terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

ENTRE O CHIADO E A HAVANESA

"Nega à mulher faculdades políticas? Não a julga em condições de concorrer para a regeneração e melhor orientação dos partidos?", lia-se no livro de Eduardo de Noronha (À esquina do Chiado, romance de 1913, em edição de Magalhães & Moniz, do Porto, p. 251). O jornalista recolhera a opinião de uma médica após ter vindo de um congresso da Liga da Soberania das Mulheres Portuguesas e "correu para a folha para escrever o resultado da sua interview" (p. 252) [folha significa jornal e interview queria dizer entrevista, ou mesmo reportagem no sentido actual].


É que, além de toda a movimentação do congresso das feministas, algumas declararam querer homens a assistir ao encontro, porque senão: 1) quem lhes fazia a corte?, 2) quem publicava "nos jornais a notícia do que aqui ocorrer"?



O jornalista era Cândido Formosinho, "dulcíssimo redactor do Carnet Mondain" (p. 132). Aí o pressentimos a discutir com um poeta nefelibata, que dizia que, para o jornalista, a poesia era "andar a comer jantares pelas casas ricas e a beijocar as mãos das damas... quando te ficas por essa altura". Noutro canto da sala da folha, "um redactor do sport fala de equitação como Marialva ou Boucher: cita qualidades e defeitos às [bi]cicletas Clément ou Raleigh; comenta as regatas de Cowes e de Nice, a primazia dos yatches britânicos sobre os slippers da União, da guiga sobre a baleeira; trata de pendências de honra, de esgrima, das subtilezas do florete, dos golpes de espada, das cutiladas do sabre, de guardas e de fintas, de pistolas de combate, do código do duelo, do jogo de pau, de escolas e de assaltos, de mestre de armas; enaltece os exercícios ginásticos, o desenvolvimento muscular, os equilíbrios e os saltos" (p. 133).

A trama volta ao jornalista, de quem se conta uma história. Formosinho "é amigo do chefe da estação da Avenida. Uma vez conversando com ele fala-se em descarrilamentos, choques, desastres. Então ele pergunta: «Em caso de choque, qual é a carruagem mais perigosa?» O chefe responde-lhe naturalmente: «A última». O Formosinho pensa um bocado e em seguida exclama: «Homem, que toleima! Pois então porque a põem?»". Como foram elevadas as gargalhadas em torno do contador da história, Cândido Formosinho estava prestes a zangar-se, quando entram na sala de redacção outros elementos do romance, nomeadamente Bento Alonso Ruiz, o galego onde se centra toda a história, o qual ganharia cem mil pesetas no El Gordo, e o dr. Epaminondas, amigo do outro doutor, o dentista, Orielasnip, patrão do galego, e grande galanteador e apaixonado, caso da russa Ilda Marinoff, a quem morre o marido. Faltava ainda Abel Mendonça, secretário do mesmo jornal, o Vespertino, para termos a panóplia das personagens do romance. E ainda Freda Kociusko, a húngara casada com Godinho Martins, e que se oferecera para traduzir um romance de Francisco Cspreghy, autor que o Vespertino publicara um outro romance em folhetim, que o secretário de redacção convertera para a nossa língua.


No outro livro, À porta da Havanesa (1911, também em edição de Magalhães & Moniz, do Porto), Eduardo de Noronha produz um romance histórico - no começo do século XX com grande impacto em termos de leitores, como acontece agora no começo de novo século. Os personagens principais são dois estudantes de Coimbra, em meados do século XIX, Augusto de Vouzela, aristocrata, e Antão de Castro, nascido em Lisboa, que acompanham os principais acontecimentos políticos do país.

Não há tantas referências ao jornalismo como no livro referido antes - mas a que existe mostra o tipo de jornalismo cultivado em finais de oitocentos. O autor descreve Bernardino Martins da Silva, antigo adido na embaixada de Paris, que possuía em casa "raras preciosidades artísticas, principalmente em bengalas e em relógios de algibeira" (p. 309), ocupando-se nas horas vagas ao jornalismo: "escreveu no Diário do Povo, no Patriota e principalmente no Suplemento Burlesco, onde o seu chiste, as suas sátiras e os seus epigramas morderam desapiedadamente nos diversos governos, a ponto da polícia o perseguir e de o glorificar encerrando-o no Limoeiro com José Estevão e com o editor do Patriota, Manuel de Jesus Coelho" (pp. 309-310).

Eduardo Noronha (1859-1948) foi oficial do exército, jornalista (secretário de redacção do Novidades de Emídio Navarro, que, no final da monarquia, era dos mais respeitados e aguerridos diários) e escritor.

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