SYRIANA
No último sábado à noite, o último bilhete da sala foi comprado por mim. Claro que ver um filme da primeira fila não é muito agradável. O ecrã é enorme e as legendas possuem um tamanho descomunal. Acresce-se que Syriana, realizado por Stephen Gagham, com George Clooney, Matt Damon e Christopher Plummer, entre outros, é um filme de histórias que se entrecruzam, dificultando a compreensão imediata.
Li atentamente as críticas ao filme nos seguintes suplementos dos jornais: "Y" (Público) e "6ª" (Diário de Notícias), ambos de 17 de Fevereiro, e "Actual" (Expresso), de 18 de Fevereiro. E contei o espaço dado em cada um desses suplementos: seis páginas no Público, uma no Diário de Notícias e quatro colunas (em cinco colunas da página) no Expresso. O total de centímetros quadrados foi, aproximadamente: Público (3186,5 de texto e 2753,5 de imagem), Diário de Notícias (396,9 de texto e 405 de imagem) e Expresso (449,76 de texto e 165,24 de imagem). Tal significa que o texto maior pertenceu ao Público (textos de Rita Siza, Mário Jorge Torres e Helen Barlow) e o menor ao Diário de Notícias (Pedro Mexia), com o Expresso pouco acima deste último (Jorge Leitão Ramos).
Se cada crítico dá uma perspectiva distinta, no conjunto podemos ver complementaridades, de ordem política, social e estética. Pedro Mexia, que tem colaborado regularmente com a revista das sextas-feiras do Diário de Notícias questiona , na sua perspectiva mais conservadora da sociedade, o lugar do filme: "como filme de tese, então, Syriana é muito pouca coisa". Mas conclui: "Convenhamos: antes Clooney que Moore", numa referência directa ao filme de propaganda anti-Bush Fahrenheit 9/11.
Já Rita Siza parece colocar-se na perspectiva liberal (no sentido americano). Para ela, filmes como Good night and good luck, com o mesmo George Clooney, em homenagem ao pai, na "melhor tradição do jornalismo de investigação", acabam (ou ajudam a acabar) com a hipocrisia da bondade do domínio americano. E a jornalista correspondente em Washington menciona outros filmes politicamente incorrectos como Munique (de Spielberg), Transamerica (de Duncan Tucker) e Capote (de Bennett Miller).
Claro que à necessidade de contenção em termos de espaço, em Mexia, existe em Siza uma maior largueza de comentários, com ela a poder explanar a recuperação de uma tradição perdida, a de o cinema de Hollywood ser um veículo de contestação social e política, exemplificados no film noir e no western. Mas também é preciso falar em opção editorial: enquanto o Público deu mais espaço a Syriana que ao filme sobre a vida de Johnny Cash (Walk the Line), o Diário de Notícias deu oportunidade oposta. Aliás, a dupla Nuno Galopim e João Lopes prolongariam a ênfase em Walk the Line na rádio Radar, num dos programas que o primeiro mantém ao fim-de-semana. E diferentes apostas significam diferentes oportunidades de olhar um assunto.
Reconheço que, ao ler as linhas já escritas, me servi muito de citações para construir esta entrada. É que o nosso conhecimento é feito cada vez mais da leitura dos jornais. Os artigos são bem mais fáceis de ler (pela complexidade, pela dimensão) em comparação com um livro. E, digo para com os meus botões, estão a passar muitos dias sem que eu faça referência a uma leitura de livro!
Além disso, reconheço ainda que um filme como Syriana precisa de descodificadores que interpretem a obra, que a tornem mais fácil de compreender. A multiplicidade de saberes na cultura de hoje necessita cada vez mais destes intermediários culturais, a quem se chama com frequência de gatekepeers. Mas há que ter precaução num sentido: cada crítico (de cinema, de literatura, de música ou outro) tem uma grelha e, por vezes, interesses próprios que esconde, levando o leitor a posições não correctas.
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