quarta-feira, 15 de março de 2006

TRAGÉDIAS TELEVISIVAS

A tragédia televisiva é o título do livro de Eduardo Cintra Torres, recentemente editado e apresentado, como aqui referi (14 de Fevereiro último) .

Que perguntas de partida colocou o investigador na sua tese de mestrado, base para o presente livro? Ele quis saber, entre outras questões, por que se chama tragédia a um certo tipo de eventos catastróficos ou de ruptura, se há semelhanças entre tragédia da Grécia clássica e tragédia na televisão, se se podem comparar factos do mundo real com criações ficcionadas, qual a estrutura narrativa do evento e sua transposição para a televisão, e as razões que distinguem as emissões televisivas deste tipo com outras matérias informativas e do domínio do jornalismo (p. 19).

A resposta, num livro bem construído e com uma carga elevada de referências bibliográficas, podemos encontrar sinteticamente na página 302: "há predisposições emocionais e racionais dos espectadores, pouco ou nada dependentes da sua idade e sexo e da sua posição na sociedade, que serão decisivas para a forma como reagem e para a sua opinião".

A investigação da tese, orientada por Manuel Villaverde Cabral, assentou em várias metodologias de ciências sociais, e que quero aqui destacar pela sua importância, para além da revisão bibliográfica do tema: análise de cassetes de programas de informação televisiva sobre uma tragédia nacional (queda da ponte de Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, há pouco mais de cinco anos), inquérito (de conveniência) a 1300 espectadores e estudo qualitativo (grupo de foco), bem como entrevistas a estudiosos e responsáveis de emissões em Lisboa mas também em Nova Iorque, Filadélfia e Washington (a propósito do ataque às torres gémeas em Nova Iorque, também em 2001).

O livro assenta em várias vertentes, que vão da construção (do conceito) da tragédia televisiva à caracterização do género que é a tragédia televisiva, as personagens e a dimensão emocional da tragédia, a reacção na recepção (o espectador) e o desfecho (do luto à necessidade de regressar à ordem).

Não é fácil fazer aqui um resumo das 318 páginas deste trabalho de Eduardo Cintra Torres em edição do Instituto de Ciências Sociais [imagem do autor no dia do lançamento do livro, na livraria Bulhosa]. Contudo, quero deixar quatro referências que me impressionaram mais ao longo do livro.

Primeira, é que os eventos do mundo real são tratados pela televisão através de formas, convenções e géneros partilhados pela ficção e pelo jornalismo (p. 39). Segunda, o jornalismo das tragédias televisivas afasta-se do discurso reflexivo puro e enquadra o discurso emocional (p. 200), o que inclui o chorar do jornalista no momento de falar da tragédia ou de confortar vítimas ou seus parentes (um abraço, o transmitir os sentimentos de pêsame).

Terceira, em termos de recepção, os espectadores mais emotivos olham os programas como isentos e objectivos e os espectadores menos emotivos aceitam menos a emotividade do jornalista no momento da emissão (p. 250). Quarta, como o poder é posto em causa no começo da tragédia (caso da ponte de Entre-os-Rios, o principal estudo apresentado), aquele tem necessidade de se refazer após o "aumento do poder da vítima" (com esta ou seus representantes a pôrem em causa o poder político) (p. 258), o que obriga este a tomar iniciativas para recuperar o controlo e a ordem (p. 259).

Quero concluir esta entrada voltando a salientar o importante e cuidadoso peso das referências bibliográficas. O autor fez uma apurada investigação na leitura e análise da cultura e tragédia clássica grega (Aristóteles, Aristófanes, Ésquilo, Eurípides, Sófocles) e latina (Horácio, Séneca), assim como sociólogos e filósofos dos séculos XIX e XX que se debruçaram sobre estes autores, para se ter uma compreensão mais profunda da tragédia pós-sagrada, que é a que passa na televisão.

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