O padre jesuíta Manuel Antunes (1918-1985) foi director e redactor da revista Brotéria (1965-1982) e professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1957-1983), onde leccionou especialmente História da Cultura Clássica.
Repensar Portugal, livro seu com nova edição este ano, prefaciado por José Eduardo Franco, contém textos que escreveu entre 1974 e 1979, anos de transição de regime. Manuel Antunes, ao produzir reflexões sobre a política portuguesa no contexto europeu e mundial, salientou factores microscópicos que não aparecem nos relatórios e nos inquéritos, como inveja, ressentimento e queixume, que nos afectam desde há muito tempo.
O pequeno livro (124 páginas) contém, sobretudo, textos de reflexão e prospecção (pág. 27) sobre a situação vivida no país a seguir a 1974. Para ele, tinha havido idealismo a mais e realismo a menos (pág. 28), pelo que se deveria trabalhar a hora de acção e deixar a hora lírica (pág. 39). Em Manuel Antunes, é evidente a necessidade de despertar uma pedagogia de mudança, capaz de ultrapassar as tentativas de endoutrinação do povo.
Realizar o bem comum, eis uma das grandes ideias do livro. O bem comum é igual a dignidade e solidariedade entre e para com os membros de uma comunidade (pág. 57). Daí, nas páginas seguintes, Manuel Antunes se propor a realização de uma revolução moral - para além das concretizadas revoluções política, económica, social e cultural trazidas pelo novo regime -, em que os valores são justiça, solidariedade, liberdade e honestidade (pp. 67-73). E em que advoga a defesa de valores culturais, morais e religiosos (pág. 80).
Ao longo da sua profícua actividade, Manuel Antunes produziu análises que apontavam reformas sociais, educativas, políticas e religiosas. Dedicou mesmo um número especial na Brotéria ao plano educativo da reforma de Veiga Simão, nos começos dos anos 70. Durante o Estado Novo, defrontou a censura, ao editar textos de Barata Moura, Miller Guerra, Bento Domingues e Lindley Cintra na revista por si dirigida.
O seu pensamento democrático é ilustrado quando afirma que, após o desmantelamento da tirania (em 1974), importava afastar o perigo contrário, a anarquia, evitando "pretensões delirantes, de liquidações sumárias [...], de julgamentos sem regras" (pp. 41-42). Nos anos da revolução de 1974, Manuel Antunes seria um símbolo de liberdade intelectual e defensor dessa mesma liberdade (Sophia de Mello Breyner Andresen, citada por Luís Machado de Abreu no prefácio ao livro Teoria da cultura). Isto na mesma altura em que destacava que o golpe perpetrado por militares em 1974 não foi, ao contrário do habitual, uma ocorrência de forças de direita. Ora, reflecte Manuel Antunes, a sociedade civil precisa de exercer crítica para uma boa qualidade da democracia (pág. 54), pois a crítica faz com que a cultura não se instale na uniformidade e na ausência de imaginação. Como valores matriciais da democracia, apresenta os seguintes: desburocratizar, desideologizar, desclientelizar e descentralizar (pág. 89), salientando a positividade, a criatividade e a solidariedade (pág. 96).
Teoria da cultura
Autor que escreveu demoradamente sobre crítica literária, educação, cultura, classicismo, teologia e política, o seu outro livro recentemente publicado, Teoria da cultura, é a sebenta que servia de apoio às suas aulas de História da Cultura Clássica, e que Maria Ivone de Ornellas de Andrade organizou para edição. A preocupação de Manuel Antunes "classificar e sistematizar concepções, tendências, correntes, doutrinas" torna o trabalho muito didáctico (prefácio de Luís Machado de Abreu).
Em Teoria da cultura, destaco os seguintes tópicos: 1) história entre ciência e arte, 2) cultura como cultivar os campos, as letras e a amizade, 3) civilização como domínio de geografia, tecnologia, organização social, 4) mito, simultaneamente sobrevalorizado e desprezado, de grande relevo na cultura grega, em especial no rito, na poesia e na filosofia (e na arte), 5) logos como capacidade de raciocinar, dividir e unir os dados do real, 6) mística enquanto modo de existir vinculado à religião, e 7) clássico como descrevendo dois sentidos principais, casos de mundo de cultura clássica e mundo de cultura europeia ocidental, autor excelente num género ou escola (um clássico de cinema) por oposição a romântico, ou seja, autor equilibrado em termos de faculdades sob o ceptro da Razão.
Manuel Antunes publicou, entre outras obras, Indicadores de civilização (Verbo, 1972), Grandes contemporâneos (Verbo, 1973), Occasionalia. Homens e ideias de ontem e de hoje (Multinova, 1980). Para além de Repensar Portugal (Multinova, 2006) e Teoria da cultura (Colibri, 2002), estão no prelo Estudos de cultura clássica e Ensaios filosóficos (ambos a editar pela Colibri).
1 comentário:
Excelente lembrança, estimado Rogério!
A clareza com que Manuel Antunes via o que deveria ser objecto da educação: o conhecimento do Homem (suas culturas e civilizações) eram o suporte do conhecimento técnico.
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