quinta-feira, 15 de junho de 2006

UM DEBATE SOBRE ARQUIVOS DE AUDIOVISUAIS

No passado dia 4, assisti, no cinema King, a um debate em torno do filme de Susana de Sousa Dias, Natureza morta (houve mais dois debates). Presentes no debate, para além da realizadora, o historiador e professor António Reis e o cineasta e professor João Mário Grilo.

O filme, que ganhou o prémio para o melhor documentário no mais recente DocLisboa, narra a ditadura portuguesa, a partir de imagens fixas (e algumas em movimento) retiradas de arquivo, além de fotografias de presos políticos retiradas dos ficheiros da polícia política. Claro que o filme tem uma marca ideológica vincada, reafirmada pelos aplausos ecoados em toda a sala, como se fosse um prémio à autora (depois li no jornal que, na sessão seguinte, um antigo dirigente partidário reclamara ainda não ter havido justiça no processo dos presos políticos).

Mas tudo isso não me convenceu a olhar para a narrativa do filme e considerá-la como possuindo a qualidade exaltada pelos convidados a falar do filme. Retiro do texto que João Mário Grilo publicou na Visão (8 de Junho): "Natureza Morta opera um verdadeiro trabalho de modelação do tempo onde se vai pressentindo a presença de algo muito dramático: a consciência de que, apesar de tudo - isto é, apesar do fim da guerra colonial, do fim da censura e da instituição da democracia -, algo daquele país de formaturas e estandartes sobreviveu ao trambolhão de Salazar, que uma certa (e terrível) poética flutua ainda sobre as nossas cabeças, resistindo à história, ao presente e à mudança".

No debate, João Mário Grilo fora mais longe ao falar de manipulação de imagens por parte da realizadora, nomeadamente o uso dos "paralíticos" (utilização que confere uma nova estética e uma conotação mais significativa às imagens). E a falta de cronologia e contextualização do filme não serve os objectivos que João Mário Grilo defende: a necessidade de se falar de um período recente mas marcante da nossa história para que as gerações mais recentes saibam como foi. O cinema pode desempenhar esse papel mas não o filme de Susana de Sousa Dias.

Sobre os arquivos

Reconheço que o meu principal objectivo - para além do filme em si - era ouvir falarem sobre arquivos de audiovisuais. E António Reis, no debate, foi eloquente: há uma grande pobreza nos arquivos da Cinemateca e da RTP sobre esse grande período, em especial imagens sobre a guerra colonial e eleições, como as de 1969. Sabe-se ter havido material censurado ou puramente ignorado. Ao invés dos jornais, que guardaram peças censuradas, na televisão houve uma rasura total desses factos. Na RTP não há imagens das campanhas eleitorais, ponto final. Para colmatar lacunas, torna-se preciso comprar arquivos estrangeiros, o que a RTP e a SIC têm feito (para séries do século XX, por exemplo).

Por outro lado, o acesso aos arquivos não é fácil. O visionamento faz-se pagar bem (tabelas exageradamente altas, que levariam João Mário Grilo a falar do custo anual da RTP aos contribuintes, como os €150 milhões do Estado, duplamente elevado atendendo ao preço excessivo pelo acesso aos arquivos do canal público; retirei o seguinte das suas palavras: "a RTP recebe dinheiro do Estado para fazer imagens e faz-se pagar caro para o acesso pessoal a essas imagens"). Contudo, destacaria o historiador António Reis, a RTP está a fazer um grande esforço em catalogação e transcrição dos materiais em filme e vídeo para formato digital, tarefa começada em 2003 e que se espera fique concluída no presente ano. A descrição detalhada das imagens é outro processo em curso. Se a RTP apostou na digitalização, o mesmo não acontece com a Cinemateca. Para Reis, esta precisaria de ser o equivalente ao instituto francês de audiovisual.

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