sábado, 15 de julho de 2006

A PROPÓSITO (AINDA) DO FILME DE SAPINHO

Ontem, escrevia sobre o olhar de quase arqueólogo em Sapinho, ao registar a destruição de Sarajevo em 1996. Mas também me impressionaram as imagens do eléctrico [bonde, no Brasil], em linha indo do centro da cidade para os arredores da cidade. Os rostos dos passageiros estavam fechados e cabisbaixos - ainda não tinham superado psicologicamente a violência e as mortes. O luto estava em curso. Um homem passava rapidamente as contas do seu rosário, embora não fosse perceptível qualquer tremura dos lábios a indicar que rezava. O interior da parte traseira do eléctrico - veículo já velho - estava grafitado.

Lembrei-me dos eléctricos de Praga, muito semelhantes. Numa das linhas, circulei dos arredores para o centro e deste para outros arredores. Parecia a viagem de Sapinho. A paisagem urbana não era assim muito bonita - os prédios eram de linhas sóbrias, para não dizer austeras. Um dos pontos fortes da linha era a paragem junto a um hipermercado, semelhante a um nosso Carrefour ou Continente. As pessoas deslocavam-se de eléctrico para trazerem as suas compras. Não notei uma perda do comércio local, de aproximação, face à concorrência do supermercado. O guia que nos acompanhou por esses dias falava do insucesso dos centros comerciais e hipermercados na República Checa, o que, como turista, não podia contestar, dada a minha ignorância da realidade económica e social daquele país.

Mas vi, apesar de tudo, abundância de bens. O que não acontecera numa passagem pela antiga Jugoslávia, antes da queda do muro de Berlim (claro que a diferença de anos, a riqueza económica dos checos e a adesão à União Europeia são elementos de distinção). Algures na Bósnia, um supermercado tinha as prateleiras vazias e o café turco que bebemos tinha uma espessa camada de pó por cima. O sítio era mais pobre que os cafés mais tristes que se encontram no nosso país.

Haveria uma frágil coesão social - famílias com poucos recursos, separação entre mundo urbano e rural com pouca mobilidade, enquadradas numa ideologia sempre omnipresente e que recalcava os valores religiosos. A guerra alterou essa coesão social - a começar pelas clivagens culturais e religiosas. Vizinhos massacrarem vizinhos temendo que estes tomassem a mesma posição - eis o desespero e a ausência de valores de bom senso levados ao extremo. A guerra produz fanatismos que a razão não consegue eliminar. Fica, como no caso do homem que se confessa ao realizador, a angústia interior e a incapacidade de jamais voltar a felicidade aquele indivíduo e aquela sociedade. Ao contrário do que Sapinho pensa, a neve que esconde quase até às copas dos pinheiros, poderá ter um efeito purificador na memória dos povos e evitar que aconteça de novo uma enorme barbaridade, logo aqui na Europa, continente dito civilizado.

1 comentário:

Anónimo disse...

da excelência de Sapinho ou
de como falar com pudor da estética da degradação e do abandono;

da competência de R. Santos ou
de como registar com sabedoria a visão dos outros.