As edições, este ano, dos livros de Sara Pereira (Por detrás do ecrã; A minha TV é um mundo) e de Felisbela Lopes (A TV das elites) reflecte a categorizada produção teórica da Universidade do Minho no domínio da televisão [de Felisbela Lopes há já o apoio para a edição de um outro livro, a sair previsivelmente no próximo ano]. Os trabalhos de ambas as investigadoras e docentes daquela universidade são, aliás, o resultado das suas teses de doutoramento defendidas nos anos mais recentes. Dois desses trabalhos sairam na editora Campo das Letras e o outro na Porto Editora, ambas do Porto, onde responsáveis da universidade dirigem colecções de prestígio no âmbito da comunicação.
Programas de informação semanal
O livro de Felisbela Lopes (parte empírica do trabalho de doutoramento e cuja capa se apresenta à direita nas imagens imediatamente abaixo) cobre 12 anos de televisão, desde o início da televisão privada, nomeadamente o estudo de programas de informação semanal. Dividido em quatro capítulos, a autora caracteriza a informação televisiva de horário nocturno (1993-2005) e avalia as suas alterações ao longo dos anos. Tal significa detectar quais os factores que estiveram na origem da alteração de objectivos, qual o espaço público criado pelos programas, quais os elementos de publicitação da esfera privada (p. 20). Isto porque, com o arranque das televisões comerciais, se passou de um período de paleotelevisão para um tempo de neotelevisão.
O trabalho empírico deteve-se nos anos de 1993, 1996, 2001 e 2003 (anos de grandes mudanças políticas), mas há informação e análise pormenorizada em todo o período investigado. Felisbela Lopes observa a ascensão e perda de impacto da SIC em termos de audiência, a recuperação da TVI até à liderança, o comportamento da televisão pública. Quanto ao seu objecto de trabalho - a informação semanal -, ela conclui pela perda gradual do seu peso na grelha dos programas. E observa uma alteração em termos de ciclos temáticos (emissões de casos de polícia, formatos de grande reportagem, programas desportivos de debate) (p. 246), o destaque das elites políticas, a desvalorização das fontes oficiais (a que chama discurso sagrado, nascendo o novo, o discurso profano), a distinção do género (homens públicos, mulheres privadas), a perda da importância da elite jornalística e o desaparecimento da possibilidade de um espaço público dinâmico.
Felisbela Lopes estuda há mais de 10 anos a televisão. A sua tese de mestrado, publicada em 1999 (O telejornal e o serviço público, capa à esquerda nas imagens acima), ocupou-se de um tempo da televisão pública sem concorrência, sendo o objecto central a informação, como o texto agora editado. No livro de 1999, a autora aponta o telejornal como espaço de reprodução de realidades predominantemente urbanas (p. 166), mas considera fundamental analisar e comparar o noticiário da RTP com o de um dos novos canais privados, a SIC. Afinal, ultrapassou de longe esse objectivo, apresentando uma obra leve (na sua leitura) mas profunda (nos seus resultados), que ficam como um marco para a pesquisa futura.
Os investigadores da área tem, agora, possibilidades de estudar e comparar os trabalhos de Felisbela Lopes com os de Nuno Goulart Brandão (televisão) e Rita Figueiras (imprensa e líderes de opinião), o que quer dizer que o panorama de percepção do campo está bem mais rico do que há oito anos atrás.
Televisão das crianças
Também sobre televisão, Sara Pereira estuda a programação infantil e juvenil. Em Por detrás do ecrã, há investigação empírica. Precioso é o capítulo dedicado à análise (a autora chama-lhe auditoria) da programação infantil e juvenil emitida pela RTP, SIC e TVI entre 1992 e 2002, como duração, horário, localização na grelha, proveniência, géneros e formas de apresentação. Mas destaco ainda a análise que Sara Pereira faz de entrevistas a profissionais e representantes de organismos relacionados com a infância. Trata-se de uma reflexão importante e, para quem já a ouviu em fóruns, a reter e pensar (e agir, se estiver em posição de decisão).
As alterações de programação, em especial as provocadas por políticas de desregulação (a autora prefere a palavra desregulamentação), com a entrada em cena de canais privados e comerciais, trouxeram, por exemplo, mais horas de programação infantil. Mas isso não significou maior diversidade em termos de género, formato, conteúdos, origem e públicos-alvo (p. 192). A nova programação inclui programas-contentor, espaços conduzidos e animados por um apresentador, com jogos, concursos, passatempos e reportagens, ligados ou não a episódios das séries de animação. As crianças e os jovens vêem-se como audiência e consumidores, o que chama a atenção das marcas e da publicidade. As marcas patrocinam os programas que despertam o interesse dos jovens espectadores pelas marcas, comprando os seus produtos.
O livro A minha TV é um mundo é a parte teórica da tese de doutoramento de Sara Pereira. Tem dois capítulos, um sobre a programação televisiva, outro sobre a televisão para crianças. Fixo-me no primeiro e revejo os subtítulos desse capítulo: tendências gerais da programação televisiva, estudos sobre programação televisiva, conceito de programação, construção da programação, valor estratégico da tipologia de género, papel do programador, papel dos públicos.
A autora trabalha uma bibliografia recente, oriunda de Espanha, França e Reino Unido. Faz também o levantamento da investigação portuguesa. Por isso, estuda, entre outros, Dominique Mehl, Raymond Williams, José Angel Cortés, González Requeña e Divina Frau-Meigs. Define programação como o estabelecimento prévio num dado período de tempo (p. 21), sujeito a estratégias de confronto directo, coexistência complementar e busca de alternativas. E chega à noção de programa como unidade básica de programação, produto específico emitido num horário e destinado a uma audiência heterogénea. O programa é resultado do próprio estúdio de televisão (fluxo) ou feito noutros locais e pronto a ser emitido (stock) (p. 30), ideias iniciadas por Patrice Flichy para distinguir as produções no cinema e na televisão. Sara Pereira fala ainda de programação horizontal e vertical (emissões fixas ao longo da semana, naquela; emissões uma vez por semana, nesta), contraprogramação e auto-promoção.
Este importante capítulo, de quase 50 páginas, tem um pequeno senão. A autora observa a investigação portuguesa sobre programação e inclui os trabalhos de Francisco Rui Cádima, Felisbela Lopes, Nuno Goulart Brandão, Cristina Ponte e Nelson Traquina. Deveria ser mais abrangente e falar igualmente em programas, área que aceitava os fecundos trabalhos de Isabel Ferin, Verónica Policarpo e Catarina Burnay, investigações muitas delas conduzidas na Universidade Católica Portuguesa.
O papel de Manuel Pinto
Os livros agora publicados por Sara Pereira e Felisbela Lopes têm o inequívoco apoio de Manuel Pinto, que, aliás, orientou as teses de doutoramento das autoras. Nos agradecimentos iniciais e, sobretudo, ao longo das obras é patente esse apoio e, mesmo, influência.
De Manuel Pinto há a destacar a obra seminal editada em 2000, A televisão no quotidiano das crianças, a sua tese de doutoramento. Cito Augusto Santos Silva, actual ministro dos Assuntos Parlamentares, e que leu a primeira versão do trabalho, referindo-se assim a esse texto:
- O dispositivo metodológico montado para aplicar este quadro de referência foi suficientemente denso e abrangente para permitir a recolha e tratamento de uma bem rica informação empírica. Escolhido o distrito de Braga como âmbito territorial do estudo, o autor conduziu um inquérito por questionário aplicado a cerca de setencentas crianças entre os oito e os doze anos, com base no qual procedeu a uma caracterização panorâmica da diversidade de práticas de recepção e uso das mensagens televisivas. Depois, os diários redigidos por quase duzentas dessas crianças possibilitaram uma prospecção mais em profundidade, de registo mais fenomenológico, destacando-se por último um conjunto de casos ilustrativos de diferentes condições e actividades de relação entre as crianças, tratadas sempre aqui como sujeitos activos, e a pequena «caixa mágica».
De uma grande densidade teórica e epistemológica, mostro apenas a introdução e o levantamento dos subtítulos: pontos de partida, contextos (discurso corrente sobre a televisão, transformações no panorama audiovisual, orientação dos estudos sobre televisão) e interrogações. Nestes pontos está todo um programa de acção, desenvolvido nas páginas e capítulos seguintes. Apenas na segunda parte, a partir da página 165, é que o autor entra no tema, primeiro destacando a metodologia do estudo empírico e depois referenciando e reflectindo no quotidiano da infância no distrito de Braga e nas práticas sociais das crianças relacionadas com a televisão.
Após este trabalho, as obras, as orientações de trabalhos e os projectos (como o Mediascópio) têm sido uma marca de Manuel Pinto e da sua escola. As investigações de Sara Pereira e Felisbela Lopes fazem parte dessa marca e dessa escola - a escola de comunicação de Braga, com muito ricas fileiras de investigação.
Leituras: Lopes, Felisbela (1999). O telejornal e o serviço público. Coimbra: Minerva
Lopes, Felisbela (2007). A TV das elites. Estudo dos programas de informação semanal dos canais privados generalistas (1993-2005). Porto: Campo das Letras
Pereira, Sara (2007a). Por detrás do ecrã. Televisão para crianças em Portugal. Porto: Porto Editora
Pereira, Sara (2007b). A minha TV é um mundo. Programação para crianças na era do ecrã digital. Porto: Campo das Letras
Pinto, Manuel (2000). A televisão no quotidiano das crianças. Porto: Edições Afrontamento
1 comentário:
Caro Rogério, obrigado pelas referências e pelo estímulo (e responsabilidade acrescida) que decorrem do teu post. Creio que a magnitude dos problemas que analisamos, designadamente quanto aos estudos televisivos, vai exigir, dentro de algum tempo, programas de pesquisa mais vastos, que juntem investigadores de diferentes instituições e cruze com o que se está a fazer e esboçar noutros países. Felizmente que começamos a ter não apenas investigadores, mas também equipas a pensar nisso.Oxalá encontrem as condições de cooperação e de apoio que contribuam para que a investigação sobre a televisão e os media que se faz entre nós alcance um patamar mais exigente.
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