segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

COMO APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS OLHAM O CONSUMO


Se Lipovetsky (2007: 12) tem uma postura de optimismo - embora moderado - afastando-se das leituras paranóicas do consumo que prevêm o abismo por detrás da abundância e comunicação, Bauman (2007: 77) tem uma definição de “sociedade de consumidores” que não engana: tipo de sociedade que “interpela” os seus membros fundamentalmente enquanto capacidade de consumidores.

De um lado, os integrados (que não questionam a sociedade de consumo); do outro, os apocalípticos, que entendem que os consumidores são seres frágeis nas mãos da sociedade do capitalismo consumista.


A perspectiva de Lipovetsky

Lipovetsky fala em três fases do consumo. A primeira, a do mercado de massa, começou por volta de 1880, com a implementação de infra-estruturas de transportes e comunicações (comboio, telefone) e o fabrico contínuo: em 1914, saíam da fábrica diariamente mil automóveis modelo T da Ford. O surgimento do marketing de massa significou a criação de marcas: Coca-Cola, Procter & Gamble, Kodak. Ao mesmo tempo, na distribuição inventava-se o grande armazém (Printemps e Bon Marché em França, Macy’s e Bloomingdale nos estados Unidos). O grande armazém – de estilo monumental, cúpulas resplandescentes e montras de cor e luz – privilegiariam a rotação rápida de stocks e praticavam preços baixos. Por volta de 1950, nasce a economia de consumo, com produtos emblemáticos da sociedade de afluência: automóvel, televisão, aparelhos electrodomésticos. Melhores recursos sociais, difusão do crédito, modos de vida diferentes (lazer, férias, moda. Juventude, despesa em vez de poupança) (Lipovetsky, 2007: 31). Na terceira fase, a do hiperconsumo (anos 1980 em diante), a aquisição das coisas e as práticas de lazer escapam às lógicas de rivalidade estatutária. À ostentação social de objectos adveio o hiperconsumo sem conflitos e conformista, com uma paixão pelas marcas mas sem fidelidade e a febre da mudança perpétua (Lipovetsky, 2007: 57).

Na segunda parte do livro de Lipovetsky (2007: 131-133), ele fala de prazeres privados, especificando cinco modelos paradigmáticos do prazer e felicidade nas nossas sociedades: 1) penia (pobreza) – as sociedades de consumo assemelham-se a um interminável sistema de estímulos das necessidades que quanto mais prometem a felicidade ao alcance da mão mais causam a decepção e a frustração, 2) dioniso – o cosmos das necessidades sobremultiplicadas é consequência do princípio hedonístico, exacerbação da vida dos sentidos, prevalência dos desejos do desfrutar do prazer aqui e agora, 3) super-homem – reconhece na cultura contemporânea o prolongamento e acentuação dos antigos valores puritanos hostis aos prazeres sensíveis, 4) némesis – a era da abundância não se define tanto pelo clima de ligeireza e benevolência mas por exasperação dos conflitos inter-humanos (Némesis é a deusa que personifica a inveja), e 5) narciso – modelo construído na base da privatização das exigências levadas a cabo pela civilização consumista.

A perspectiva de Bauman

Igualmente partindo de uma perspectiva histórica, Bauman (2007: 79) indica que, no discurso do século XVIII, o consumidor estava praticamente ausente. Mesmo no século XIX, e apesar do incremento das práticas comerciais, publicitárias, técnicas de exposição e das arcadas ou galerias comerciais, arquétipos dos centros comerciais contemporâneos, não houve muitas referências a consumidores. Então, a metade masculina integrava-se como produtores e soldados e a metade feminina como prestadora de serviços. Ora, em contraste com a sociedade de produtores e soldados, a sociedade de consumidores concentra as suas forças de coerção e treino na manipulação do espírito. Cessam estratégias de treino diferenciadas para rapazes e raparigas: o papel de consumidor, diferentemente do papel de produtor, não tem um género específico. Especificando melhor: a sociedade de consumidores não reconhece diferenças de idade ou género nem as tolera nem reconhece distinções de classe.

Na sociedade de consumidores, os “indivíduos” marcados pela sua exclusão são “consumidores falhados”, não podem ser considerados pessoas. Portanto, consumir significa investir na própria pertença dentro da sociedade. Reforçando: o propósito fundamental e decisivo do consumo numa sociedade de consumidores não é satisfazer necessidades, mas converter e reconverter o consumidor em produto, elevar o estatuto dos consumidores em bens de troca vendáveis.

Bauman (2007: 91), entre outros exemplos, chama a atenção para o aparecimento de categorias como o consumismo infantil e a ideia da infância no produto de consumo, ajustando as estratégias de marketing do ponto de vista das crianças, com alteração da perspectiva dos pais. Ou da perda de solidariedade com o aumento da sociedade de consumidores: desaparecem os grupos e cresce o individualismo, sem qualquer vínculo duradouro na actividade de consumir.

Leituras: Bauman, Zygmunt (2007). Vida de consumo. Buenos Aires, México e Madrid: Fondo de Cultura Económica
Lipovetsky, Gilles (2007). A felicidade paradoxal. Lisboa: Edições 70

2 comentários:

.lucas guedes disse...

interessante texto. há também o consumo 'animal', pelo menos aqui no brasil. li uma pesquisa dizendo que há tantos petshops quanto motéis, e olha que não são poucos.
e este blogue é muito bom. estava procurando blogues de portugal e este é um dos melhores.

Anónimo disse...

Obrigado.
Rogério Santos