sábado, 29 de dezembro de 2007

A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA


Um livro cuja leitura me entusiasma de cada vez que pego nele é A musa aprende a escrever, de Eric A. Havelock (1988/1996). Tema: a passagem da poesia à palavra escrita na Grécia e na sua literatura.

Se McLuhan chamou a atenção para os efeitos psicológicos e intelectuais da imprensa, Havelock haveria de recuar até à cultura grega, 700 anos a. C.

Este autor concluira pela lentidão do processo de alfabetização. Até então, o coro (da tragédia grega) desempenhara um papel fundamental na conservação da tradição, oralidade também associada à dança e à melodia. Resumindo: nas sociedades orais, a responsabilidade do discurso residia na associação da poesia, da música e da dança. A poesia era originalmente o instrumento operativo de armazenamento de informação cultural para reutilização ou o instrumento para o estabelecimento de uma tradição cultural (Havelock, 1996: 90).

Essa necessidade de manter a memória exigia um conteúdo económico da mesma (Havelock, 1996: 128), acrescentando-se novo material com cuidado e apenas quando se perdia informação anterior. Acrescento eu: a memória oral era o garante da preservação e da tradição mas impedia a renovação e a mudança.

Continua Havelock: na oralidade primária, as relações entre seres humanos regulavam-se pela acústica (complementada pela percepção visual do comportamento corporal). A comunicação primária inclui o sorriso, o franzir das sobrancelhas, o gesto (Havelock, 1996: 84) - códigos visuais puros.

Na história da palavra grega escrita, o texto mais antigo é, provavelmente, de Hesíodo, escreve Havelock (1996: 97). As letras, como artefactos, objectivam a memória, tornam-na visível. O facto de serem uma transferência que ainda retém a oralidade materna, e não uma criação nova, é reconhecida pela expressão mãe-musa, grammata, certamente lembrança da genealogia de Hesíodo.

No século VI a. C., existiam funcionários específicos, os memorizadores, a que corresponderia um serviço executado para uma sociedade não letrada, onde se preservavam oralmente as regras e os precedentes e a cronologia do passado (Havelock, 1996: 102), desígnio servido pela memorização de uma sequência fixa de nomes associada a acontecimentos e acrescida de uma contagem de anos. E, continua Havelock, todas as informações apontam não para a pronta aceitação do alfabeto mas para uma resistência. A leitura, juntamente com a escrita, não seria celebrada no drama grego antes do último terço do século V, no Hipólito, de Eurípides (Havelock, 1996: 106). Os primeiros textos da chamada grande literatura, em pergaminho ou papiro, seriam encarados pelos gregos da época como continuação da prática oral.

Depois, à medida que se efectivava a mudança para a literacia, produziam-se alterações na configuração da sociedade humana (Havelock, 1996: 119). Oferecia-se um acto de visão em vez de um acto de audição, como meio de comunicação e de armazenar a comunicação. O armazém da acumulação, já não material acústico mas visível, torna-se passível de alargamento.

Leitura: Eric A. Havelock (1988/1996). A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva

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