Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
HERÓIS
Heróis, estrelas, semi-deuses - eis um assunto que perpassa a literatura, o cinema, a banda desenhada, o desporto. E a cultura, da mitologia grega até aos dias de hoje.
Lembro-me de Edgar Morin, em As Estrelas de Cinema (em francês simplesmente Les Stars, 1972; a tradução portuguesa é de 1980). Começa logo Morin: "o ecrã parecia dever apresentar um espelho ao ser humano: ofereceu ao século XX, os seus semideuses, as estrelas de cinema". As semidivindades, continua, são as estrelas de cinema. No cinema, escreve ainda, as estrelas são seres que têm propriedades quer do humano quer do divino, suscitando um culto, uma espécie de religião. Morin alarga o seu conceito à televisão: não há hoje nenhum talk show que não apresente uma guest-star.
As estrelas cinematográficas começaram logo desde o surgimento do grande ecrã, tornadas heróis ou heroínas: Mary Pickford, a noiva do mundo [ou a namoradinha de Portugal, como se diz a uma vedeta ainda jovem], a dinamarquesa Theda Bara, que introduz o beijo na boca, Rudolfo Valentino (o primeiro herói que fez chorar espectadoras de todas as idades; a morte dele levou duas mulheres a suicidarem-se em frente à clínica onde estava o seu corpo), Greta Garbo (que se isolou quando envelheceu, mantendo o mistério da beleza), James Dean e Marilyn Monroe (ambos falecidos no apogeu das suas carreiras e ainda jovens, hoje ícones de grande relevo).
Morin, nessa revisitação às estrelas do começo do cinema, escreve sobre a beleza-juventude, fixando idades ideais das estrelas femininas nos 20-25 anos e das estrelas masculinas nos 25-30. Hoje, creio, houve um abaixamento das idades: o culto das adolescentes face aos músicos dos Tokio Hotel é um exemplo disso (ainda esta semana, o líder da banda dizia andar à procura de namorada; imagino o movimento que houve nos blogues e wikis, com mensagens desenfreadas de adolescentes ou pré-teens).
O herói - a beleza do herói ou da heroína - desperta felicidade, sonho, mito, evasão da realidade, continua Morin. Mas o cinema, como a banda desenhada e a telenovela, criou o antídoto, o anti-herói: ao lado da rapariga bonita e ingénua está a má rapariga, a vampe e erótica que rouba o namorado à outra. O fim feliz (happy end) fica fragilizado. Aliás, a mitologia grega é um conjunto de narrativas onde nem sempre a evolução dos acontecimentos caminha no sentido da felicidade mas da tragédia.
Quando li Morin, sublinhei atentamente as páginas do capítulo "Deuses e Deusas". Ele escreveu sobre o mito, que definiu como "conjunto de condutas e de situações imaginárias. Estas condutas e estas situações podem ter por protagonistas personagens sobre-humanas, heróis ou deuses; diz-se então o mito de Hércules, ou de Apolo. Mas, com toda a exactidão, Hércules e Apolo são um herói e o outro deus dos seus mitos". Os heróis, conclui, estão a meio caminho entre os deuses e os mortais. O herói é o mortal em processo de divinização. O herói humano é denominado semideus.
Mais à frente, Morin diz: tornadas heroínas, divinizadas, as estrelas são mais do que objectos de admiração; são ainda sujeitos de culto, criam uma espécie de religião, como se escreveu acima. Dá um exemplo prático: um grande estúdio americano recebia em 1939 entre 15 mil e 45 mil cartas mensais de admiradores ou fãs de uma estrela de cinema. Hoje, há sítios, com fotografias e vídeos, mensagens e blogues animados pelos fãs. E as estrelas não estão sozinhas, agora acompanhadas pelas séries ou sequelas (007, Indiana Jones, A Idade do Gelo, Star Trek).
O fã quer saber tudo do seu ídolo, compra tudo o que a ele diz respeito, guarda relíquias (bilhetes de cinema ou concertos, entrevistas, fotografias, vídeos), procura identificar-se com ele nos comportamentos, na moda, nos penteados. Vive-se uma vida imaginada ao lado do herói ou da heroína. Tudo isto também se torna possível porque a vida privada das estrelas é escrutinada a todo o tempo, por vontade delas ou porque os paparazzi e outros as perseguem constantemente. As revistas de mexericos alimentam o circuito de modo incessante, contribuindo para a informação (e desinformação, como eu tenho escrito no blogue).
Base da mensagem: Edgar Morin (1980). As Estrelas de Cinema. Lisboa: Livros Horizonte
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