domingo, 19 de outubro de 2008

MAL NASCIDA, UM FILME DE JOÃO CANIJO

João Canijo nasceu no Porto em 1957. A sua biografia indica que frequentou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e, no início da década de 1980, começou a trabalhar como assistente de realização em filmes de Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Alain Tanner e Werner Schroeter. Iniciou carreira como realizador em 1988.

Gostei muito do seu filme Noite Escura (2004), com Beatriz Batarda e Rita Blanco, entre outros, que conta a tragédia de uma família num bar de alterne. O seu proprietário entrega a filha mais nova a uma máfia russa actuando em Portugal, como forma de pagar uma dívida. Isto provoca a forte oposição da filha mais velha e da mãe contra o pai.

Agora, o filme Mal Nascida, a sexta longa-metragem do realizador, com argumento do próprio João Canijo e de Celine Pouillon, estreado em Portugal mais de um ano depois da sua apresentação no festival de Veneza em 2007, centra-se na personagem de Lúcia. Da
sinopse do filme, lê-se que “Lúcia é uma mal nascida, uma mal amada, a eterna viúva do seu pai. Um grito antes de ser um corpo, enlouquecida, maltratada e humilhada, sobrevive enlutada com a lembrança do crime e da traição da mãe, grita a sua dor inconsolável para não dar descanso nem paz aos assassinos do pai. Vive na esperança desesperada do regresso do irmão para cumprir a promessa de vingar o sangue do pai”.

O filme conta com Anabela Moreira (no papel de Lúcia), Gonçalo Waddington, Márcia Breia, Fernando Luís e Tiago Rodrigues.

Para o realizador, a base de Mal Nascida foi Electra: “É o equivalente nas meninas do complexo de Édipo nos meninos e é uma personagem que há imensos anos, desde que a descobri, me fascina. Um dos meus primeiros filmes «infantis», chamado Filha da Mãe, já era uma versão adolescente e incipiente da Electra. E toda esta trilogia que começa na Noite Escura e à qual falta a posta do meio foi feita única e exclusivamente para chegar à Electra” (entrevista a João Antunes,
Jornal de Notícias).

Sobre a ruralidade patenteada no filme, e na mesma entrevista, o realizador responde que "houve sempre uma razão não folclórica para escolher o meio ambiente onde se passavam as histórias. No Noite Escura, uma casa de alterne, que é um mundo de mentira e de representação, era o meio ideal para uma tragédia passar desapercebida". João Canijo quis contar a história clássica da família de Agamemnon e de Clitemnestra, pais de Electra, em três filmes (falta um, Piedade, ainda no papel).

Assim, “Mal Nascida é um filme que incomoda, por escancarar as portas de um país isolado, de ganância, crime e castigo, adultério e incesto, a cheirar a morte, de ausência de diálogo dentro das famílias. As aldeias são tão desertificadas, que vivem numa espécie de casulo, onde todas as emoções e todos os sentimentos explodem muito mais facilmente; qualquer pequena coisa faz explodir" (
Diário Digital/Lusa).

Anabela Moreira, a Lúcia do filme, viveria mês e meio numa aldeia transmontana próxima de Boticas antes da rodagem como se fosse uma camponesa. Ela cuidou de vacas e de porcos e engordou 25 quilos para ficar mais monstruosa, carácter que se adequava perfeitamente à personagem.

O filme usa muitos planos curtos, com frequência de uma grande beleza visual apoiada por uma banda sonora muito agradável. Bastantes planos são filmados próximos das personagens, o que dá para perceber melhor os seus sentimentos. Psicologicamente, o filme é muito duro e a montagem feita repete várias ideias e tramas, penso que para o espectador interiorizar a violência. Aliás, em entrevista, o realizador confirma essa violência: "É o retrato de um país que, nas cidades, se julga que não existe. Que está escondido. Curiosamente, este ambiente rural de uma aldeia um bocado perdida é mais compreensível internacionalmente. A imagem da senhora com o lenço preto na cabeça não é só portuguesa, é também da Sicília, dos Balcãs" (
Jornal de Notícias).



Hoje, ouvi parcialmente uma entrevista que ele deu a Inês Meneses, da Rádio Radar. Do que ouvi não gostei. Está-se perante um indivíduo pessimista (Portugal é uma invenção artificial, disse, como se não chegassem mais de oitocentos anos de existência), politicamente dogmático (defendeu os vinhos do Douro, verticais, contra os vinhos do Alentejo, horizontais, numa estranha defesa regionalista do norte contra o sul – e logo contra o Alentejo, que é uma região do país tão autêntica e esquecida como a de Trás-os-Montes que ele retrata) e contra algumas formas de fazer cinema (coloca-se a favor do cinema de autor contra o cinema de massas, como o de Call Girl ou o Crime do Padre Amaro, e que se percebe melhor no vídeo da Sapo, acima embebido). Julgo que ele está zangado contra o país e incapaz de o ver lucidamente.

Confesso que vim desapontado da sala de cinema, pela desesperança que ameaça tornar-se o padrão da cinematografia portuguesa de autor - e mais fiquei com a entrevista à rádio.

4 comentários:

Anónimo disse...

"MAL NASCIDA, UM FILME DE JOÃO CANIJO"
li a sua opiniao e compreendo que o seu lado positivo entre em choque com declaraçoes provoctorias de JC. No caso de Canijo ele merece que o sintam zangado. Ele trabalha para que o que calcamos venha a superficie - o que nao gostamos de olhar - se imponha, porque somos também assim, como eles nos retrata.
Entra em choque com a visao urbana, civilizada, bondosa do Rogério... Ainda bem!

Paula Crespo disse...

Também ouvi a entrevista de João Canijo à rádio. E também não gostei. A ideia, que já está estafada, de que Portugal é um antro de gente feia, corrupta, grunhos e por aí fora, já cansa. Cansa pela falta de vontade de mudar as coisas, pela má língua atávica; cansa, porque, para João Canijo, Portugal se resume a esse quadro de tons negros com que pintou o país, pela visão miserabilista e monocórdica.
Apesar do que está mal, apesar de todas as carências que, efectivamente, acontecem por cá, muita coisa se fez e muito caminho se constrói. Não me parece que seja com atitudes desse tipo, de uma certa arrogância intelectual, que o país avance. Precisamos de atitudes mais construtivas. Não cegas, claro, mas empreendedoras. E o cinema português, do que tenho visto, sofre muito desse mal: é a fotogenia do miserabilismo, do qual vive e se alimenta.

Daniel Ribas disse...

Olá Rogério,

É um pouco difícil de falar sobre Canijo sem parecer suspeito, por causa da tese sobre os filmes dele.

Mas, gostava de discordar um pouco com as tuas palavras.

Por um lado, porque Canijo sempre foi ácido (mesmo quando os filmes dele eram mais aceites) e até porque Mal Nascida é um filme tipicamente dele: a mesma capacidade de adaptar uma linguagem cinematográfica a uma história (é tão pugente esta narrativa sobre a brutalidade e tão magnífica a associação que Canijo faz ao livro do José Gil: «A grosseria resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma.» ).

O filme é autêntico e agarra-se à verdade das personagens. São elas que contam! O cinema português não pode ser só o visual bonito de Soraia Chaves no "Crime do Padre Amaro". E Canijo - penso que essa é uma realidade que escapa aos críticos do cinema de autor - é apenas um realizador que faz o seu trabalho e aquilo em que acredita.

Quando ouço o Canijo falar a verdade do seu filme salta-me à frente (a verdade do seu olhar). Algo que nunca acontecerá com o realizador de «O Crime do Padre Amaro»). Essa é a grande, grande diferença.
:)

Anónimo disse...

Falam do belo ou do feio, do mau ou do bom com uma apropriação típica de quem julga! São conceitos subjectivos que cada um transporta como a sua mera e exclusiva verdade. A história de Electra não é portuguesa, ninguém inventou nenhum cenário nem acrescentou nada que não tivesse acontecido... Essa é a rudeza maravilhosa dos filmes de Canijo! Quem é o primeiro a apropriar-se da verdade e a negar a visão dos outros? Talvez quem nunca tenha reflectido sobre a profundidade da Arte?! Virá alguém à frente para negar ao
Homem a sua visão para o alienar em patriotismos, moralismos e muitos outros "ismos" do pensamento colectivo?! A individualidade é um direito, mas acima de tudo um dos deveres da arte...na minha mera opinião subjectiva, claro!