Esta mensagem não é um texto filosófico nem tem a densidade que gostaria de dar. É mais um reflexo sensorial de informações recentes, de leituras ou visionamentos dos últimos dias em temas como individualidade, a ideia de minoria, a ausência mas necessidade de fazer um país, o corpo, a sua exposição e/ou degradação, a destruição e reconstrução.
São três elementos/momentos que se cruzaram em mim sem uma ordem pré-determinada, mas que ocorreram por acaso - e procurei constituir um sentido, uma unidade.
1) Em 1981, na prisão de Maze, em Belfast (Irlanda do Norte), Bobby Sands e outros activistas do IRA iniciavam uma greve de fome, reclamando o estatuto de preso político. A primeira-ministra inglesa era Margaret Thatcher. Sands faleceria 66 dias após o começo da greve de fome, mais nove activistas seguiriam o mesmo destino. Agora, Steve McQueen, um artista plástico britânico, pegou na história e passa-a para o cinema: Fome (Hunger) (2008) é o título.
A construção dos planos obedece a um grande rigor, vários deles com muito despojamento. Um longo plano - a meu ver, o centro do filme - mostra Bobby Sands e o padre Dom na cantina da prisão. A confissão (conversa, revelação) mostra o pensamento do militante irlandês: a decisão inabalável da greve de fome, que poria fim à vida de Sands e à luta dos "cobertores" e da "sujidade". Estão os dois frente a frente, com a câmara a fazer de testemunha, como se fosse uma terceira personagem. O resto da cena é ocupado com mesas e cadeiras vazias. De vez em quando, fumam um cigarro, deixando um fumo azulado. A história do potro ferido a que Sands resolvera pôr cobro, afogando-o, conduz-nos, logo depois, a outro plano central no filme e igualmente demorado (em tempo real): o da lavagem do corredor para o qual convergem as celas: o polícia limpa lentamente a água e os detritos largados pelos presos por debaixo das portas das celas, no protesto continuado. A política como pano de fundo é uma constante do filme: os corpos despojados, nus ou semi-cobertos por cobertores, violentados até ao sangue, eram a representação real desse ideal de política.
Steve McQueen esteve em Portugal enquanto artista plástico a primeira vez em 1997, no Centro Cultural de Belém, com a sua obra Life/Live. O filme é de uma grande violência mental, mesmo espiritual.
2) Na conferência de Isabel Gil, Paisagens em ruínas. A Alemanha no cinema americano do pós-guerra, apresentada em 8 de Janeiro de 2009, a responsável pela Faculdade de Ciências Humanas da UCP falou do filme Wolfgang Staudte, Os assassinos estão entre nós (Die Mörder sind unter uns) (1946). Fiz um pequeno vídeo de uma das passagens dessa conferência.
Isabel Gil acentuou as palavras ruína e destruição na sociedade alemã pós-Segunda Guerra Mundial. Referiu abundantemente Simmel, Benjamin, Freud, que escreveram sobre a ideia de ruína na cultura alemã, e alargou esses pensamentos às repercussões na Alemanha a seguir a 1945: por um lado, limpar as feridas, com a reconstrução dos edifícios e o restabelecimento de laços; por outro lado, manter ruínas como memória viva do que acontecera, indicar que todos eram suspeitos (daí o relevo que deu ao filme de Wolfgang Staudte, Os Assassinos Estão Entre Nós, de 1946). A sociedade (e os indivíduos) procuravam a renovação a troco do esquecimento, mas a memória pesava nas mentes e nos gestos. Os corpos arrastavam-se num lamento quase sem fim.
3) Retiro do sítio do Teatro Aberto informação sobre a peça que está quase a sair de cena, Imaculados, de Dea Loher: "Fadoul e Elísio, dois emigrantes clandestinos, culpam-se de nada terem feito para impedir uma mulher de se afogar. Rosa gostaria de receber mais atenção de Franz, o marido. A mãe de Rosa está doente e instala-se em casa da filha. Absoluta, uma jovem cega, dança num bar junto ao porto para homens que ela não vê e que a desejam. Uma mulher só dispõe-se a tudo para existir aos olhos dos outros. Ella, uma filósofa que não aceita o envelhecimento, deixou de acreditar nas ciências do espírito e fala sozinha" [ver também notícia da RTP neste vídeo].
Dea Loher, autora alemã nascida em 1964, escreveu esta peça estreada em 2003, onde se cruzam "destinos que as contingências da vida separou, criando uma dança de roda marcada pelo humor do desespero e a energia de viver". A peça é um conjunto de histórias tristes, desastrosas, terríveis, como se uma geração estivesse condenada à violência e ao desespero. Para mim, a história mais densa é a de Francisco, que arranja emprego numa funerária e passa a tratar dos mortos e a levar para casa os corpos que não são reclamados. Rosa, a sua jovem mulher, que ambiciona ter um filho, vive encurralada entre o "ofício" do marido e a pressão da mãe, que se instalara na sua casa e dormia no único quarto da casa. Os corpos nus e desprezados, a procura da purificação através do ritual da lavagem, na noite fria do teatro, deixou-me desconfortado.
Conclusão) Já o sentira no filme de McQueen e na sequência do comboio que atravessa Berlim (ou outra parte da Alemanha) no filme de Staudte. O acordeão na peça de Loher atenua o meu desconforto. Mas as palavras da autora voltam a colocar-me na mesmo posição ingrata. Em entrevista, diz ela, a propósito da maldade, a "observação muito clara e precisa dos seres humanos, absolutamente nada idílica". Ou: "não conheço muitas pessoas felizes, para falar com franqueza". O corpo e a nudez em Fome, o corpo e a nudez em Imaculados, a mágoa espiritual em Staudte - três ocorrências a que assisti, sem as ter previamente programado, deixaram-me muito cansado, quase arrasado. O país, a fronteira, a realidade, a definição do eu e do outro, a liberdade, eis assuntos que me levaram a pensar muito nestes dias.
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