domingo, 2 de maio de 2010

JOÃO CANIJO E A SUA (NOSSA) FANTASIA LUSITANA

  • A cebola pode comer-se de várias maneiras: crua, cozida, assada. A batata é a sua irmã. A batata tem um companheiro: o bacalhau.
O som off do documentário provoca a gargalhada nos espectadores do filme. Não se trata de asserção filosófica nem de ingenuidade, mas sim o reflexo da memória de um tempo em que a ruralidade se pintava com cores de harmonia e sucesso, o glorioso passado chegava para mostrar a nossa grandiosidade, os altos dignatários nacionais recebiam em cerimónia diplomática os embaixadores dos países beligerantes (Inglaterra e Alemanha). Ou da alegria triste como o testemunho de Saint-Exupéry acrescentava: os refugiados da Segunda Guerra que ele viu em Lisboa e Estoril encontravam um país quase totalmente alheio ao que se passava na Europa e envolto na construção de uma grande fantasia, que parecia fazer de Portugal distinto do resto do mundo. Os outros testemunhos (Alfred Döblin, Erika Mann) revelam ainda mais do país que acolheu esses refugiados que procuravam destino do outro lado do Atlântico. Os documentários sucessivos que João Canijo nos mostra na sua Fantasia Lusitana revelam como éramos sessenta ou setenta anos atrás e como há muito paralelismo com a actualidade.

Escreveu Vasco Câmara no Público: "quando se vê Fantasia Lusitana logo se percebe que Canijo fez sua uma proposta exterior: um olhar sobre uma «noite escura» portuguesa. Imagens de arquivo como um espelho: cai a redoma protectora do passado, as imagens estão próximas, o suficiente para interpelarem o presente. Começa por ser anedótico, mas a meio da viagem somos capazes de nos vergar perante o peso. Canijo, esse, diverte-se. Sem a ficção e sem pacto com personagens".

Diz o realizador:
  • Quando estava a escrever a nota de intenções do "Mal Nascida", saiu "Portugal, medo de existir" do José Gil. O que eu estava a tentar escrever nessa nota era aquilo, dito por alguém que passou mais anos a pensar sobre as coisas e que as sabe exprimir melhor do que eu. E antes de ler o livro já tinha como epígrafe da nota uma frase de um taxista de Lisboa que me levou a um restaurante. Disse-me que o restaurante era muito bom, que, pois claro, não há cozinha como a portuguesa, e depois, claro, que o cozido à portuguesa não há em mais nenhuma parte do mundo. Eu não lhe disse nada, mas podia dizer que o prato nacional madrileno é o cozido, há em todo o mundo, depende é dos enchidos que lá se metem. Mas o mais genial foi quando disse: "Veja lá que eles lá fora nem sequer sabem o que é um caldo Knorr". Como diz o José Gil, pior do que a ausência de forma é a arrogância de se julgar forma. É isto: uma falta de educação secular. Um problema que não está remediado, antes pelo contrário, está agravado. A massificação do ensino foi mal feita, a falta de educação é maior do que no meu tempo do liceu. Isto não é saudosismo. É que já nem as referências mitificadas os miúdos da idade do meu filho têm. E a ignorância dos professores é muito maior do que a do meu tempo (Público online).
Nas imagens do filme de Canijo, ganham relevo as ruas da baixa de Lisboa cheias de gente, as cantigas populares, a exposição de 1940 com uma linguagem asséptica das realizações monumentais, os discursos de Salazar e as multidões nas manifestações. Mas nada nos é mostrado sobre a industrialização ou as actividades comerciais e de artesãos. Apesar de os documentários da época serem muito ideológicos, conseguimos ler as forças e as fraquezas do regime - voltado para o passado, estranhando os costumes dos estrangeiros em trânsito pela cidade porque havia um fechamento nacional sobre si mesmo, com festas e cantigas que escondiam a pobreza e a ignorância que as estatísticas nos informam. Depois, durante muitos anos, as imagens que se conheciam de Portugal no estrangeiro eram as de viúvas vestidas com preto carregado o resto da vida, ruas sujas e sombrias, homens pouco barbeados, eléctricos circulando por ruas íngremes na Graça e na Mouraria, a torre de Belém.

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