Livro que, no essencial, resulta de uma dissertação de mestrado no ISCTE, o texto agora publicado por João Manuel Rocha Quando Timor-Leste foi uma causa tem como pergunta de partida: porque deram os media tanta atenção à crise de Timor em 1999? Recorde-se que, nessa época, foi lançado um referendo à população, que indicou querer a independência face aos ocupantes indonésios. Seguiu-se um banho de sangue que levou a comunidade internacional a pressionar o poder da Indonésia a retirar as suas forças militares do território de administração portuguesa. O asssunto teve uma grande repercussão nos media portugueses na fase a seguir ao referendo.
Os jornais estudados João Manuel Rocha (Público, Diário de Notícias) tomaram uma atitude longe do distanciamento assente nos rituais da objectividade (p. 97) e preferiram o envolvimento e o posicionamento (p. 101). O autor escolheu aqueles jornais devido a critérios distintivos: sobriedade e distanciamento (p. 65). O período estudado foi o de 1 de Agosto a 15 de Outubro de 1999, aquando do referendo naquela ilha do Pacífico. O investigador fez um subgrupo de análise para estudo das fontes entre 29 de Agosto e 6 de Setembro e um outro sobre os editoriais escritos sobre o tema. O trabalho divide-se em duas partes: usar instrumentos para perceber a preponderância de Timor no fluxo noticioso e os contornos que assumiu; procurar compreender as questões editoriais (p. 25). No final do seu livro, escreve o autor: "quando se inscrevem na esfera do consenso, os mecanismos do paradigma jornalístico do distanciamento são relativizados e é menos escamoteada a condição dos media como actores do espaço público? [...] Como se as causas noticiadas pudessem, nestes contextos, ser também as causas dos jornais" (p. 186).
A um bem construído capítulo de história de Timor Leste sucedem-se capítulos, geralmente curtos, sobre os media (poder mediático, opinião pública, agendamento, valores-notícia e newsmaking, monotema noticioso, tematização em Luhmann enquanto instrumento de selecção de temas que compõem a estrutura temática, actores do espaço público, esfera de consenso em Hallin). O autor fala em grande número de notícias num período curto (eu chamaria a isto momento crucial, momento quente, momento de relevância e grande densidade), a que se sucede o que designa por kairos (no caso, quando a tematização mudou e o assunto Timor perdeu a relevância). O autor trabalha ainda com os conceitos de lugar declarado e posicionamento assumido (conceitos emprestados pelas ciências da linguagem e pela semiótica) quando se refere aos editoriais e títulos referenciais (Mouillaud), que denunciam (denotam parecia-me mais elegante) a linha editorial do jornal – “o lugar onde se situam como sujeitos de enunciação” (p. 29) – e títulos informacionais (anafóricos por definição, dado que relacionam um saber anterior e um saber novo) (p. 109). O momento de início da tematização foi o massacre de Santa Cruz (12.11.1991), o kairos a morte da fadista Amália Rodrigues (7.10.1999). Exemplos de títulos referenciais: a hora da verdade, os dias do terror, os dias da esperança, os dias da reconstrução (p. 112). O impacto da tematização e do monotema Timor foi de tal ordem que as eleições legislativas de Outubro de 1999 foram subalternizadas, ou “ocultadas” da política nacional (p. 86; p. 185).
João Manuel Rocha considera que Timor-Leste (após o massacre do cemitério em 1991 e o referendo em 1999) constituiu um duplo acontecimento – porque aconteceu, porque os media fizeram entrar o tema na agenda pública (p. 77). Seguindo Mário Mesquita, que cita, diz que duplo acontecimento mediático quer dizer um desdobramento em notícia e cerimónia. O trabalho dos media pode fornecer aos indivíduos oportunidades de identificação, integração e reforço social – no caso, quanto a Timor (p. 88). A informação é substituída pela emoção, ou pelo relacional, escreve também o autor (p. 115; p. 179). Para ele, o elemento emotivo faz parte do código genético da imprensa popular que apela ao sensacional e ao espectacular, mas que pode chegar aos jornais de referência (p. 117). Isso conduz à perda da ideia de objectividade como contrapartida do imediatismo e da interactividade. A onda de violência que se seguiu à divulgação de resultados do referendo operou uma viragem na opinião pública mediada pelos jornais e pela televisão, nomeadamente no nosso país (p. 175) (ver abaixo capa do jornal Público de 19.11.1991).
O capítulo 16 traz um contributo interessante: os traços das personagens jornalísticas divididas entre herói ou o líder que só queria ser um homem comum (Xanana Gusmão) e vilão com um perfil belicista, bárbaro e negativo (Eurico Guterres), necessariamente uma construção dos media atendendo ao posicionamento (o primeiro como independentista, o segundo como integracionista, colaborador da Indonésia, país agressor) (p. 184). Estes perfis podem ser lidos em conjunto com outra observação do livro, a da permeabilidade das notícias aos rumores, alguns dos quais eram desmentidos depois (p. 157).
O livro está muito bem estruturado, usa a bibliografia mais relevante (caso de uma tese de mestrado de Graça Matos, apesar de não dar o relevo merecido ao trabalho de Rui Marques, Timor-Leste: o agendamento mediático, que o autor só teve conhecimento após a escrita da dissertação) e ilustra o modo como se fazem as notícias: subjectivas, às vezes com emoção e com sentimentos, resultado da cultura mais vasta que é a da sociedade.
Leitura: João Manuel Rocha (2011). Quando Timor-Leste foi uma causa. Coimbra: MinervaCoimbra
Observação: eu escrevi sobre o tema aqui e aqui, a partir do livro de Rui Marques.
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