"Hei-de correr por todos esses campos, como se fosse rapariguita, e roubar fruta em todas as herdades. Hei-de colher flores aos braçados e levá-las ao Senhor Padre António para o altar do Santíssimo. Senhor! Há lá nada mais bonito do que os campos pela Primavera! Hei-de também levar os filhos da Engrácia à Fonte Nova, para comermos amoras e trazer para casa uns dois ou três cabazitos bem cheios. Farei doce e com a amora mais graúda encherei uns cestos maneirinhos para ofertar a quem se deva algum favor" (p. 131).
"Numa Primavera de luz suave, o mundo não esperou mais, porque ela tinha dezanove anos, um olhar assustado, um corpo irrequieto, e havia a força estranha das coisas desconhecidas a abrir caminho, o caminho mais ou menos tortuoso de cada um" (p. 59).
"Conheci-o num garden-party de Edith Grey, como afinal o podia ter conhecido à beira-rio, junto daqueles pequenos vendedores ambulantes, num antiquário da Rua de S. Bento, ou em qualquer teatro de revista. Mas isto só o compreendi mais tarde, e ainda mais tarde o ousei confessar" (p. 42).
"Corro e a minha saia tem cintilações vistosas. Ele segura-me pela cintura e rimos. À nossa esquerda, uma alegre barraca pintada de verde com uma grande árvore fazendo sombra às pequenas mesas de madeira tosca. Sentamo-nos. Ah! Cerveja fresquinha! Que bom! E farturas acabadas de fazer, com muito açúcar e canela" (p. 33).
"O claxon voltou a tocar. Peguei então na bolsa que estava sobre o leito e lancei em redor um olhar cansado. Não poderia abandonar todas aquelas coisas em que vivera durante alguns anos sem mágoa. O nosso quarto!... A nossa casa!... Os nossos filhos!... Abandonar!... Não há palavras que exprimam certos estados de alma. Há apenas estados de alma que a alguns é dado suportar... Ele foi o homem que casou comigo. E, como tal, deu-me uma casa, dois filhos, um automóvel, criadas, algumas viagens... enfim, o que todos os maridos dão ou procuram dar às mulheres. Mas, em troca, eu não sei o que lhe dei" (p. 95).
"De súbito, julgo que vou rir também, que sou capaz de trautear uma canção em voga, que sou capaz de desnudar os ombros, de conquistar os homens, de arrebatar a Primavera e de me encontrar outra num sítio diferente. Ali, naqueles cabarets, há muitas que passaram a ser outras... E eu sinto o Destino quebrar-se em mim, na síncope do meu coração desnorteado. Mas avanço exaltada pela mesma insatisfação que me deslumbra! Uma porta abre-se e batem-me no rosto as notas vibrantes de uma melodia e o cheiro acre de tabaco e de gente. O fumo envolve-me. Um calor imenso inunda-me a fronte. E assalta-me uma necessidade inadiável de beber. Vou entrar, vou beber, vou rir e chorar e ser para todo o sempre a sombra de mim própria. Um homem passa e dá-me um encontrão. Ao fundo, uma mulher pintada chama-o. Fujo" (pp. 166-167).
Maria Irene Dionísio publicou Adeus, Amigo!... em 1960, resultado de prémio atribuído pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), então liderado por César Moreira Baptista. António Quadros, no prefácio, dá indicações preciosas sobre o livro de contos: "Dir-se-á que as qualidades de Maria Irene Dionísio ainda não amadureceram por completo; que, atraída pela sua grande facilidade. deixa às vezes resvalar a sua linguagem para o lugar comum; que os contos podiam ser mais seleccionados pois nem todos possuem a mesma altura".
Da autora, não conheço mais nenhuma obra. Esta é certamente de juventude. Nem sei bem o seu percurso pelo teatro e pelo teatro radiofónico. Na fotografia, Maria Irene Dionísio contracena com Manuel Lereno, uma representação evocativa do quinto centenário do nascimento da rainha D. Leonor na Emissora Nacional, ao lado de actores conhecidos como Carmen Dolores, Jaime Santos, Álvaro Benamor, Luís Filipe, Isabel Wolmar, João Perry, Júlia Santos, Luís Santos, Varela Silva, António Sarmento, Odete André e Mário Sargedas (Flama, 16 de Maio de 1958).
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