sábado, 28 de junho de 2014

A acompanhante

Um dia, Cecília Ferreira ouviu na TSF uma reportagem sobre uma enfermeira que acompanhava o funeral de mortos que não tinham mais ninguém a despedir-se deles, tendo totalizado cerca de mil funerais. Muito sensibilizada com o tema, ela começou a escrever uma peça, em que Luzia, agora já reformada e isolada em casa após a morte do seu gato, recordava os funerais e as histórias desses homens que tinham morrido.

Na peça, alguns deles tinham sido íntimos dela, marido ou amantes, tinham nome, profissão, idiossincrasias, pronúncias. Um deles, achava que ia morrer quando perdesse o último dente, simultâneo do Apocalipse. Quando o dente desapareceu, ele verificou que não morrera, decidindo ir ao dentista pôr uma placa brilhante e abrindo um consultório de cartomância. Outro era um excelente vendedor pelo telefone. Outro ainda conhecera numa viagem para Paris: ele tinha em mente suicidar-se na torre Eifell, que ela não permitiu, com a amizade entre ambos a acabar naquele momento. No final da peça, a personagem reflecte ser não uma acompanhante de luxo, empregada sexual, mas acompanhante de mortos: uma prostituta de mortos, conclui. A caixa onde estão as fotografias dos mortos e as suas biografias é empurrada para debaixo da cama, como Luzia querendo libertar-se dessas recordações.

Em entrevista, a autora comentou sobre o tema: "Havia uma estranheza, inerente à própria condição de se fazer o acompanhamento de mortos, que eu queria que perpassasse todo o texto". Para prestar homenagem à enfermeira da reportagem da TSF, Cecília Ferreira inventou tudo de novo e transfigurou a personagem em absoluto. Com a peça, ela ganhou o Grande Prémio de Teatro Português SPA/Teatro Aberto 2013 e agora no palco deste teatro. A autora, licenciada em Teatro/Interpretação pela ESMAE (Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo) e licenciada e mestre em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade do Porto, é membro fundador da companhia Teatro a Quatro em 2010, no Porto, uma das companhias residentes na Fábrica da Rua da Alegria, naquela cidade.

Em toda a peça, a actriz Mónica Garnel é enérgica: dança, salta, é ginasta, enche o palco, imita sotaques, faz trejeitos, é séria e brinca, independente e receosa. Gostei ainda da música (Joana Sá e Luís Martins) e da cenografia (Gonçalo Amorim). O tema leva o espectador a pensar - a morte. Mas o modo como a narrativa decorre prende o mesmo espectador, que aprecia as múltiplas e, às vezes, divertidas histórias.

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