Como investigador, não me interessam temas que destaquem as representações do Holocausto, do Terceiro Reich e de outros acontecimentos traumáticos, reconciliação e silenciamento repressivo, descolonização, direitos humanos internacionais, nação e políticas de imigração ou ainda globalização. Mas o livro de Andreas Huyssen, Políticas de Memória no Nosso Tempo, chamou-me a atenção, porque inclui os temas da memória e do esquecimento, assuntos perto da História. E critica a ideia de discurso da História como comentário à tradição, à selecção e exclusão (p. 106) e vê a globalização como reduccionista e falha de profundidade histórica (p. 115).
Recordar e esquecer não são simples categorias, com Huyssen a seguir Ricoeur. O autor pensa nomeadamente no assassinato de milhões de judeus (Holocausto) mas também nos bombardeamentos de saturação das cidades alemãs na II Guerra Mundial em Dresden e em Hamburgo, por exemplo (p. 31). Nas décadas a seguir à terrível tragédia europeia, foi consentido falar no Holocausto mas os alemães reprimiram ou negaram ou evadiram-se a falar nesses bombardeamentos. Disso opera com insistência Huyssen, numa estratégia de equilibrar ambas as violências. O trabalho de memória na Alemanha pode equiparar-se a exemplos mais recentes como os regimes de ditadura na Argentina ou no Brasil, na guerra da Bósnia e nas guerras de limpeza étnica em África. O autor escreve uma coisa simples mas profunda: fazer desaparecer cadáveres é fácil mas esconder ruínas dos bombardeamentos é difícil. As marcas ficam para além da geração que as viveu, num revisionismo histórico compreensível para um alemão que cresceu na sinistra década de 1950 e que emigrou para os Estados Unidos na década de 1970, onde vive e investiga. O seu revisionismo está baseado na literatura e nos seus diversos discursos produzidos e dos quais ele manifesta quer paixão quer afastamento intelectual, à esquerda ou à direita.
A ruína e a sua nostalgia tornam-se restauro e adaptação. A ruína é reconstruída e aproveitada para outra finalidade, como se fosse um lifting (p. 91). Daí, ele recordar Piranesi e as suas ruínas, uma outra crítica à ideia de modernidade como progresso e elevação moral da humanidade (p. 94). Afinal, o século XX foi muito sujo, com um rol inesgotável de cadáveres e ruínas, longe dessa elevação e novas tecnologias, como os autores do sublime tecnológico não cessam de incensar.
Algo interessante que descobri neste livro: após a pós-modernidade nasce o novo modernismo (p. 102). A tese que Huyssen sustenta é que os americanos propuseram-se reescrever a História do século XX, libertando outra visão das vanguardas e da relação entre baixa e alta cultura. Os livros de história das artes visuais levam-nos sempre ao triunfo da perfeição do abstracto de origem americana (caso de Pollock). Mas, entende o autor de Políticas de Memória no Nosso Tempo que a teoria crítica francesa e alemã reposicionou o pós-modernismo saloio americano.
Em Huyssen há uma dialéctica permanente, visível, por exemplo, quando analisa o livro de Horkheimer e Adorno de 1947, onde estes autores elaboram o conceito de indústria cultural (p. 64). A tragédia alemã (Holocausto) traduz também o lado escuro (ou obscuro?) da modernidade. Os nazis etiquetaram a arte moderna de degenerada (1937) mas alguns modernistas, caso de Heidegger, foram seduzidos pelo regime. As reflexões sombrias dos autores da escola crítica seguem pistas dentro do que se considera a anomalia das artes visuais alemãs, como o expressionismo, cheio de irracionalismo e romantismo (p. 66). Huyssen é mais claro quando lembra as diferenças nas artes e na literatura dos dois lados da Alemanha dividida no final da II Guerra Mundial (p. 72) e nas interpretações. Na Europa de leste, Kafka era lido como um crítico do socialismo burocrático, ao passo que no Ocidente ele representava a alienação existencial universal (p. 80).
Nem sempre estou de acordo com ele, caso da quase elisão da História quando fala de cultura ou da identificação do trabalho actual de memória como a musealização dos sítios para fins turísticos e comerciais, incluindo os documentários históricos que passam no canal de televisão História. O autor refere-se aos lugares de memória, como exemplifica Pierre Nora. É certo que ele, noutro momento, se diz historiador da cultura (p. 109), mas não o diz de modo claro. E espero o desenvolvimento do seu pensamento quando tece uma crítica forte aos media: estes, apesar de divulgarem a memória, contribuem para a amnésia. Mais à frente, Huyssen esclarece que os media seleccionam e constroem memórias imaginadas, com desconstrução da temporalidade, memória, tempo vivido e esquecimento (que encontra em Paul Ricoeur, na p. 28, e Maurice Halbwachs, na p. 15). E quando comenta o tempo dos media como usando a memória tout court das coisas subjectivas e triviais, que podem levar o historiador a olhar isso como autenticidade (estou a pensar na reconstrução da história a partir da leitura de jornais sem qualquer filtro ou desconfiança sobre o modo de fazer notícias). Mas já me leva a pensar de modo diferente quando vê a modernidade dos media como ausência da longue durée em termos de contactos comerciais, imperiais e coloniais (p. 115).
Por outro lado, acho frágil a sua argumentação quando pega no aforismo de McLuhan do meio é a mensagem ou quando interpreta o que Benjamin ou Adorno escreveram. Ele não é hermeneuta mas um intérprete com uma grelha própria (a página 20 do livro é um bom exemplo). E, para terminar os comentários negativos à obra, quando identifica o obsoleto da tecnologia (p. 21) – ele pretendia comprar um computador mas o empregado da loja convidou-o a passar na semana seguinte e tomar a decisão ou gratificação, pois uma nova gama de produtos traria componentes mais poderosos. Aqui, faltou a análise económica da necessidade de substituição de produtos dentro da lógica da produção capitalista.
Deixo como apetite para a leitura deste magnífico livro as suas sete teses sobre como sair do impasse da literatura global (pp. 126-129), em que se propõe eliminar a visão vertical de alta e baixa cultura, a necessidade de ver a especificidade do meio (do oral ao visual e ao escrito), da retoma da discussão da qualidade estética e da forma, da relação entre cultura, habitus e distinção social (Bourdieu) e da vontade urgente de reunir especialidades como forma de superar debilidades que cada disciplina pode representar.
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