Jean-Pierre Sarrazac, que foi reescrevendo a peça com o título O Fim das Possibilidades desde 2014, estreou-a hoje, no Porto, a nível mundial. De início, Deus (Ivo Alexandre) e Satã ou o Adversário (Fernando Mora Ramos) discutem os problemas da humanidade. O desemprego, os sem papéis (imigrantes clandestinos) e os sem abrigo - os novos "danados da terra" - têm aumentado de número, baixando a esperança entre os homens, a que sobrevém o suicídio. Satã, qual funcionário superior de Deus numa empresa corporativa, propõe uma alternativa, semelhante à da publicidade de habitações e férias de sonho.
A personagem principal da peça é JB (Paulo Calatré) - que pode ser o Job bíblico ou João Baptista, aquele que anuncia o Messias, ou a marca de uísque com o mesmo nome. JB não é um indivíduo mas a multidão que sofre os problemas modernos do desemprego, da desqualificação tecnológica, da reciclado ou do descartável, perde o lar, a família e os filhos já não acreditam no pai. Os sem rosto podem também ser irmãos ou irmãs de JB e contam as suas histórias e embarcam para um mundo subterrâneo e sem luz (onde se desce mas nunca se volta a subir à superfície), espécie de nova transumância humana. Os sem rosto lembram o velho coro da tragédia grega, implicitamente associada à atual condição política de contestação do governo grego de Tsipras.
JB, um vencido com orgulho de vencedor, inicia o seu percurso miserável quando tem um pesadelo durante a noite e acorda a mulher Gladys (Joana Carvalho). Depois, começa a embriagar-se enquanto conta ao seu amigo Mamadou (Alberto Magassela) que tem um chefe Pitbull que o exaspera com dificuldades diárias. Mamadou, trabalhador africano sem papéis, acaba por ser denunciado porque protegeu uma larápia (Maria Quintelas) que roubou para dar comida ao filho. JB decidiu suicidar-se e entra no inferno clamando contra Satã. Este, que fizera um acordo com Deus para evitar o desespero final, o suicídio, sentiu-se derrotado, o que confessa a Deus, pessoal ou através de telemóvel de última geração. Deus diria: "Deixar que Job se tenha enforcado não é apenas uma falta, é um crime, um falhanço". JB versus Satão ou o Adversário é, nas palavras do autor Sarrazac, uma tensão permanente entre o mais mítico e o mais quotidiano. JB anteciparia o fim das possibilidades, isto é, atuara de modo não previstos pelo demiurgo.
Em texto de Pedro Sobrado, os sem rosto que se apresentam diante de Satã são memórias distantes do Job bíblico: o que espera uma reparação, o que manifesta uma obsessão por buracos e lugares escuros, o que ecoa os lamentos da personagem bíblica, o impaciente, o que transporta a versão benigna do nazismo (serões recreativos, excursões, saídas em grupo, festas).
O Fim das Possibilidades - que resultou do esforço conjunto do Teatro Nacional de São João (Porto) e do Teatro da Rainha (Caldas da Rainha), com encenação partilhada por ambos os diretores artísticos (Nuno Carinhas e Fernando Mora Ramos) - é a extensão da desesperança. O "fim das possibilidades" é, ainda para Sarrazac, a deportação dos mais desfavorecidos da América Latina, uma parábola e ainda um palimpsesto, com memórias de outras peças do autor, mas também do expressionismo, de Kafka, de Woyzeck ou de Strindberg. A cenografia e os figurinos, de Nuno Carinhas, dão uma dimensão mais profunda, a que se associam sons de fábrica e de delírio coletivo.
Depois do Porto, a peça será representada em Lisboa e Caldas da Rainha. Duas conversas sobre a peça estão marcadas: Porto no dia 21 de março e Lisboa no dia 11 de abril.
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