Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
terça-feira, 3 de março de 2015
Indústrias culturais no Estado Novo: o caso da música ligeira
Ontem, a aula de Indústrias Culturais e Criativas foi preenchida com um convidado que tem trabalhado a intersecção de indústrias culturais e Estado Novo: Pedro Russo Moreira. A sua tese de doutoramento, “Cantando espalharei por toda parte”: programação, produção musical e o “aportuguesamento” da “música ligeira” na Emissora Nacional de Radiodifusão (1934-1949), trabalhou as indústrias da música no Estado Novo (disco, edição de partituras e rádio). O autor defende ter havido durante o Estado Novo uma grande actividade das indústrias culturais ligadas à música e às artes performativas. Na sua apresentação, ele referiu a escuta doméstica da rádio, defendeu a perspectiva de a Emissora Nacional de Radiodifusão ser criada, entre outras razões, para satisfazer a comunidade de músicos e, no seu todo, a indústria da música.
Nessa época, ouvir rádio era a classe média e média alta urbana escutar concertos de música séria (clássica). Havia um índice elevado de desemprego entre os músicos, pois o disco, mais barato e sempre disponível a ser tocado, acabara com as orquestras de salão e de variedades que existiam no centro das grandes cidades. A entrada do maestro Pedro Freitas Branco, durante a primeira direcção da Emissora Nacional, a cargo de António Joyce, foi muito favorável à criação de orquestras. Apesar de haver discos, não havia música gravada suficiente para preencher as horas de emissão sem estar a repetir os mesmos sons. Salazar, na perspectiva de Pedro Russo Moreira, queria uma rádio para "dar música" ao povo, de modo literal. Mas as finanças da rádio pública começaram a ficar mal: Joyce era músico mas não contabilista. Joyce criara uma estrutura musical semelhante à BBC, contratando cerca de 90 músicos e organizando 11 orquestras. Isso levou a que fosse nomeado outro director da Emissora, Henrique Galvão, que ocupou o cargo entre 1935 e 1939. Ao projecto artístico da primeira direcção sucedeu um período em que funcionou um espírito reformador. O número de orquestras foi reduzido e, com isso, os custos baixaram. Com Galvão, o número de orquestras ficou em três. Os grandes objectivos de Henrique Galvão, que entraria muito depois em dissidência com Salazar, eram fazer a Emissora Nacional ouvir-se em todo o país e chegar ao império através das ondas médias. António Ferro sucederia no cargo entre 1941 e 1949, trabalhando um conceito de "aportuguesamento" da música ligeira, isto é, adaptando a estilos modernos, tipo jazz e swing, o repertório rural existente. Além disso, ele desenvolveu a ideia de política do espírito (a propaganda através das indústrias culturais e criativas) e a marca "não aborrecer, nunca aborrecer", através da música ligeira. Até aí, a Emissora era conhecida como a "Maçadora Nacional".
Um outro ponto desenvolvido na aula por Pedro Russo Moreira foi o da produção musical, com análise das orquestras fixas, compositores, vedetas de rádio, programas radiofónicos e cantores. Aí, havia uma divisão de trabalho decomposta em maestro e orquestras, compositores e cantores, modelo inspirado na BBC. O meu convidado ainda se referiu a quatro marcos essenciais na história da rádio pública de então, com a criação do Gabinete de Estudos Musicais (1942), concurso de artistas ligeiros (1943), Centro de Preparação de Artistas da Rádio (1947) e programa Serões para Trabalhadores. A parte mais saborosa da aula foi deixada para o fim, com a passagem de áudios de canções da época (irmãs Meireles [na imagem no cimo], irmãs Remartinez, Júlia Barroso) e análise da carreira internacional de algumas artistas da época.
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