quarta-feira, 1 de abril de 2015

50 anos do programa Em Órbita


[programação de Rádio Clube Português em FM, Diário Popular, de 10 de Julho de 1968]


Gostaria de saber mais sobre o programa Em Órbita, que iniciou a sua emissão faz hoje cinquenta anos na programação de FM de Rádio Clube Português (1 de Abril de 1965), para escrever aqui. Mas fico-me como colector e reorganizador de informação. Os melhores textos que conheço sobre o programa continuam a ser os de José Matos Maia, Luís Pinheiro de Almeida e Rui Vieira Nery (este a partir do que Matos Maia identificou).


Desde 1963 que a estação tinha uma programação em FM distinta da de ondas médias e onde começou a actividade um conjunto de profissionais, inicialmente amadores ou jovens entusiastas da rádio. Em Março de 1965, o horário das 19:00 às 20:00 ficava vago e foi endereçado o convite a Pedro Albergaria e Jorge Gil, que com João Manuel Alexandre começaram o programa.

O indicativo inicial foi um instrumental dos Kinks, Revenge, de co-autoria de Ray Davies e de Larry Page (que foi produtor/manager dos Kinks), então inédito em Portugal, apresentado por Pedro Castelo, o primeiro locutor, a que se seguiu Cândido Mota, o apresentador que se tornaria a voz mais conhecida do programa (ver Antena, 1 de Agosto de 1968, em reprodução aqui ao lado). Ao longo do tempo outros apresentadores estiveram no programa: Jorge Dias, Jaime Fernandes, Fernando Quinas e João David Nunes. Bandas inglesas e norte-americanas começaram a ser conhecidas em Portugal graças a esse programa, como Simon e Garfunkel, Donovan, Tim Buckley, Beach Boys, Janis Joplin, Doors, Bee Gees, Jefferson Airplane e Procol Harum, que outros programas como a 23ª Hora, de João Martins, em Rádio Renascença, procuravam seguir.

Em Agosto de 1967, o Em Órbita passou pela primeira vez um tema português, A Lenda de El-Rei D. Sebastião, do Quarteto 1111. O program tinha uma frase marca: "um programa feito por nós e dito por mim", o que fazia do programa uma obra colectiva. Rui Vieira Nery faria uma excelente análise ao programa (citado a partir do livro de José Matos Maia, Telefonia, por dificuldade de eu não encontrar o original):

"Tudo começou com um grupo de jovens profissionais da rádio que em meados da década de 60, em pleno reino do nacional-cançonetismo, de Rafael e de Gianni Morandi, tocava regularmente o que de melhor e mais avançado se fazia na música popular anglo-americana, constituindo um espaço radiofónico alternativo que serviu de referência de qualidade a toda uma geração marcada pelo movimento associativo universitário, pela resistência antifascista, pelo trauma da guerra colonial, pela ruptura com os códigos morais pequeno-burgueses dos filmes cor-de-rosa de Doris Day e Marisol".

Na fase pop do Em Órbita, o programa ganhou prémios (Ondas, Barcelona, Casa da Imprensa, ambos em 1967). Na fotografia um pouco abaixo, vêem-se os autores do programa no prémio da Casa da Imprensa 1967 (Antena, 15 de Fevereiro de 1968). A partir de 1969, nasciam as Novas Aventuras do Em Órbita, com introdução de música clássica. A primeira fase do programa terminara a 31 de Maio de 1971. Para Jorge Gil, "Foi uma opção consciente. A música anglo-saxónica já nada me dizia. A minha transformação operou-se enquanto estudante de Arquitectura, em Belas-Artes, com as lições de Conjugação das Três Artes, de Manuel Rio de Carvalho" (Luís Pinheiro de Almeida, em 1 de Abril de 2000). Data desta altura, julgo, o novo indicativo, retirado da peça de Richard Strauss, Assim Falava Zarathustra. Houve ainda um terceiro indicativo, retirado de The Fair Queen, de Henry Purcell.

Para um dos produtores do programa, Pedro Albergaria (entrevista a Luís Garlito em 1 de Junho de 1995; Arquivo da RTP AHD 14946): "andámos uns meses a emprestar os discos ao programa que se chamava Ritmo 64. Quem fazia a locução, um deles, era o Pedro Castelo. Chegámos a uma certa altura que também achámos que começava a ser demais. «Então estamos aqui a fazer o programa de borla para outra pessoa»? Um dia, o meu pai, que era muito amigo do Júlio Botelho Moniz, um dia, estávamos a jantar e disse: «queres fazer um programa de rádio»? «Quero». Telefonou ao Júlio Botelho Moniz e disse: «olha, o meu filho quer fazer um programa de rádio». «Então, ele que venha amanhã falar comigo». Eu e o Jorge Gil fomos ao Rádio Clube Português, falámos com o Júlio Botelho Moniz, e ele diz: «então, pronto, está tudo bem, começam depois de amanhã». Nós ficámos assim um bocado a olhar um para o outro. «Depois de amanhã? E nome para o programa? E locutor»? Que nem nos passava sequer pela cabeça falar ao microfone. Tivemos de fazer isto em dois dias e o Em Órbita começou no dia 1 de Abril [de 1965], mentira quase. [...] Provavelmente, não dormimos. A escolha do locutor para o programa foi a parte mais fácil porque nós já conhecíamos bem o Pedro Castelo do outro programa. Aí não houve grande problema na escolha. O que é que ia fazer o programa? Tocar só discos? Tínhamos de escrever textos? Acho que fomos apanhando pouco a pouco a fórmula. Ao fim de seis, sete meses, foi a fórmula definitiva do Em Órbita. Ao princípio, andámos à procura de como é que tudo aquilo ia funcionar. A escolha do nome foi o antigo director do Rádio Clube Português, o Álvaro Jorge. Ele saiu-se com este Em Órbita. E, pronto, naquela altura, estava muito na moda. Todos os dias, havia coisas que era a grande novidade quando se punha uma coisa em órbita. No dia 1 de Abril de 1965, com este indicativo. Era um dos nossos grupos ingleses preferidos, completamente desconhecido em Portugal, e esse álbum que está aí, o primeiro álbum que eles gravaram, tinha um instrumental. Os Kinks. O único instrumental que eles gravaram. Estivemos indecisos entre este tema dos Kinks e um tema do Booker T. & the MG's, Green Onions".

Já Jorge Gil, em entrevista que me deu (17 de Janeiro de 2012), diria: "Eu tive acesso, nesse aspecto talvez privilegiado, eu tinha vinte anos nessa altura, por duas fontes distintas, a uma discografia totalmente nova e que estava a irromper com imensa força em Inglaterra e nos Estados Unidos. Que era um repertório completamente desconhecido em Portugal, mas completamente. [...] Julguei que havia uma generosidade, uma entrega, uma pesquisa de outras sonoridades que não as sonoridades que estavam em moda, pelo menos na Europa. E essa generosidade é tão vital, do seu ponto de vista de construção musical tinha muitas coisas comuns com a tradição musical barroca, medieval europeia. [...] Como é que eu tive acesso a ela? Por duas vias distintas. Uma, o meu irmão estava a estudar na Suíça nessa altura, em Lausanne, e enviava-me regularmente gravações que ele achava interessantes para Lisboa. Outra via, na Valentim de Carvalho trabalhava um senhor chamado Mário Martins. [...] Foi assim que eu descobri por exemplo um disco completamente perdido, mas que estava perdido cá ou foi perdido cá, como estava perdido na própria Inglaterra. Uma gravação chamada Go Now. Foi o primeiro EP que os Moody Blues editaram. Foi assim que eu descobri por exemplo um disco completamente perdido, mas que estava perdido cá ou foi perdido cá, como estava perdido na própria Inglaterra. Uma gravação chamada Go Now. Foi o primeiro EP que os Moody Blues editaram". A mudança, para Jorge Gil, foi com "a industrialização. Aquilo estava a ser diferente porque as pessoas, de repente, descobriram, o poder económico descobriu que tinha ali um filão de ouro inesgotável. O Woodstock foi um primeiro prenúncio da queda". Aí, o programa Em Órbita começaria a trilhar outra rota, agora cada vez mais com Jorge Gil a comandar, nomeadamente após o afastamento de João Manuel Alexandre.

Na interpretação de Luís Pinheiro de Almeida, "não estávamos perante um programa que promovia «estrelas da rádio» (muito comuns na época), quer fossem os seus autores ou o apresentador (na altura dizia-se «locutor»), mas anunciava, isso sim, uma certa radicalidade, um corte com a tradição de falsa intimidade com o ouvinte, tantas vezes expressa, pelos chamados «locutores da voz doce» e suas companheiras de emissão, no “amigos ouvintes, muito boa noite; somos a vossa companhia durante estes próximos minutos". A atitude de passar a música do Quarteto 1111 foi também a de levar o Em Órbita a eleger a canção Strangers in the Night, de Frank Sinatra, como a pior canção do ano.

Sobre a música do Quarteto 1111 no Em Órbita, foi lido um texto por Cândido Mota:

"Em Órbita vai proceder hoje à transmissão de um trecho de música popular portuguesa. Porque se trata de uma medida sem precedentes neste programa, e por termos o maior respeito pela nossa própria coerência e por todos quantos nos acompanham com a sua adesão consciente e construtiva, tem pleno cabimento algumas palavras introdutórias ao trecho que vamos apresentar. Desde sempre que alguns dos mais conhecidos intérpretes e conjuntos portugueses de música ligeira que nos têm procurado, seguindo modalidades várias de aproximação no sentido de Em Órbita divulgar as suas respectivas realizações, em amostra, em disco ou em registo magnético. Em face dessas sucessivas tentativas, sempre nos recusámos em aludir, por considerarmos que a totalidade dessas realizações não justificava o nosso interesse em abrir excepções, quer por entendermos que a sua transmissão iria ocupar tempo que poderia ser preenchido com larga vantagem pela nossa música habitual, quer por considerarmos que nenhuma delas reunia as condições mínimas para poder representar qualquer coisa de semelhante a uma tentativa honesta e inédita do lançamento das bases da música popular portuguesa que todos nós em boa consciência queremos renovada por inteiro de alto a baixo. Por varias vezes e sob diversos pretextos temos aqui exprimido alto e bom som que somente transmitiríamos qualquer modalidade de música popular portuguesa que tivesse um mínimo daqueles requisitos que poderemos condensar assim: 1 ° - Autenticidade aferida em função do ambiente e da sociedade portuguesa e da tradição folclórica do nosso país. 2° - Afastamento radical da utilização puramente oportunista de padrões internacionais e pseudo internacionais, impossíveis de transpor com verdadeira honestidade para o nosso meio. 3° - Rompimento frontal com as formas de música popular comercial mais divulgadas em Portugal e que se caracterizam pela teimosa insistência em seguir os figurinos caducos e provincianos de Aranda do Douro, San Remo ou Benidorm. 4° - Demonstração de um poder criador e interpretativo que ultrapassasse de forma a não deixar dúvidas, apelando a uma imitação grotesca que se faz no estrangeiro, quer na forma de copia pura e simples, quer na de adaptações apressadas, quer na utilização de uma língua, de um estilo ou de um som de importação, tudo defeituosamente assimilado. Estes portanto os requisitos mínimos que sempre exigimos a nós próprios e aos que nos procuraram com pedidos de transmissão. Nunca nos limitámos porém a uma recusa seca e peremptória. Os nossos pontos de vista sempre os exprimimos desenvolvidamente em particular e em público. Os que nos ouvem com regularidade, devem recordar-se do que aqui foi dito sobre este mesmo tema no ano passado. As nossas sugestões sobre os caminhos a seguir na nossa opinião ficaram então bem claras. Recordemos algumas delas: Recurso ao folclore português nas suas múltiplas variedades e manifestações. A ligação intima à realidade portuguesa nos seus mil e um aspectos e facetas. Recurso à poesia portuguesa popular ou erudita, medieval, clássica ou contemporânea. O aproveitamento das formas melódicas e rítmicas da musica popular portuguesa, ainda não adulterada. A revisão total dos temas e respectiva forma de expressão com base na construção lírica dos poetas da literatura portuguesa, do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende aos poetas da actual geração de Coimbra. Sem preocupações de síntese, estas são algumas das formas possíveis no nosso entender de encarreirar a música popular portuguesa para alguma coisa de novo, de verdadeiro e de autentico. Há anos que vimos proclamando. Nunca ninguém demonstrou ou procurou demonstrar que no plano dos princípios e em concreto, estávamos errados. Posto isto temos, para nós, que o trecho que vamos hoje apresentar, preenche os requisitos mínimos para a sua divulgação por este programa com todas as implicações que a sua transmissão através de Em Órbita acarretam. Tendo por título A Lenda del Rei D. Sebastião, é escrito por um português é tocado e cantado por portugueses. Não vamos fazer uma apreciação exaustiva desta gravação, das suas qualidades que são muitas, e dos seus defeitos que terá alguns. Vamos apenas apontar o que nela se nos afigura existir de importante e de novo. Assim é desde logo um apontamento especial sobre os aspectos puramente interpretativos, instrumentais e vocais, e num período em que neste programa se dá cada vez mais importância aos criadores e cada vez menos aos intérpretes, a gravação que vamos apresentar tem qualidade interpretativa mais do que suficiente, e uma nota que sobressai com rara evidencia O que neste trecho impressiona mais, o que nele se inclui de mais nitidamente inédito, é que em cima de uma melodia de encantadora simplicidade, há uma história singela, popular, portuguesa, dita em versos directos, certeiros, desenfeitados. Conta-se uma história, uma lenda. Como lenda que é trazida até hoje pela herança popular, pertence ao folclore, ao património mais íntimo da comunidade e dos costumes do nosso país. Depois, é um tema eterno, de criação nacional e de validade perene e universal. É um Sebastianismo colectivo que na lenda se retrata É a ideologia negativista dos que têm uma crença irracional em coisas, em valores e em poderes que não existem, dos que se deixam enganar pelos falsos Messias do oportunismo e da mistificação. A lenda del Rei D. Sebastião, escreveu José Cid, é o Quarteto 1111" (Oocities).

O programa passou a uma segunda fase. Continuando a seguir o texto de Vieira Nery (ainda segundo citação de Maia):

"a vocação alternativa do Em Órbita não se tinha esgotado, quando a consagração institucional do seu primeiro figurino ameaçava transferi-lo das convulsões do desafio para a rotina fácil do sucesso, o programa reconverteu-se radicalmente em termos que muitos consideram quase suicidas e dedicou-se exclusivamente à música erudita, com destaque para o repertório barroco. Os seus níveis de audiência desceram vertiginosamente e tudo indicava que a sua própria sobrevivência estaria em breve seriamente ameaçada. A nova aposta do Em Órbita assenta sobretudo não só na promoção de um repertório pré-romântico quase desconhecido entre nós como na insistência na sua execução com instrumentos e práticas interpretativas originais, um movimento que em toda a Europa lutava ainda arduamente pela conquista de uma credibilidade que lhe era negada pelos herdeiros da tradição interpretativa oitocentista. O combate de Jorge Gil, que ficara sozinho à frente do programa, começou pouco a pouco a surtir efeito. Os níveis de audiência começaram de novo a subir (no início da década de 80 eram já dos mais altos da rádio portuguesa) e a consequência mais evidente deste fenómeno que se foi verificando foi uma procura crescente de gravações de música antiga no mercado discográfico nacional. A partir de 1985 o Em Órbita passou a promover concertos de música antiga. Começou com a Orquestra Barroca de Amsterdão, dirigida por Ton Koppman, para celebrar os tricentenários de Bach e Handel, e prosseguiu com produções tão importantes como a primeira audição moderna de La Guerra de los Gigantes de Sebastian Duron, pelo Hesperion XX, o Tristão e Isolda medieval de Bóston Camerata, os concertos de música de câmara de Jordi Savall, Ton Koopman e do Musica Antiqua, de Colónia ou a apresentação monumental das Vésperas de Monteverdi dirigidas por Savall, poucos dias antes da sua gravação num dos álbuns mais unanimemente aclamados da discografia europeia dos últimos anos". Nessa altura, a Portugal Telecom patrocinou o Em Órbita, ao abrigo da Lei do Mecenato Cultural.

Os produtores do programa, apesar do sucesso em Rádio Clube Português, procuraram também a Emissora Nacional. Em dois anos seguidos foram apresentadas propostas, ambas durante a direcção de Clemente Rogeiro, o primeiro discutido no Conselho de Planeamento de Programas na reunião de 8 de Junho de 1970. A emissora pública procurava programas destinados à juventude, mas o parecer foi negativo. A resposta seria seca, com a Emissora Nacional a considerar a proposta em próximo programa-tipo. Daí uma segunda insistência dos produtores, discutida em reunião de 17 de Junho de 1971. Um dos dirigentes, Adolfo Simões Müller, estudara a proposta, chamara os responsáveis e achara boa a proposta. O número dois da estação, Alberto Represas, indicaria dificuldades financeiras e técnicas.

De acordo com Luís Pinheiro de Almeida, Jorge Gil arquiva em casa milhares de páginas com os textos do programa da segunda fase: "Cada programa tem 20 páginas de texto". Ao recusar publicar os textos, considera-os "orais, unicamente para serem lidos na rádio". Depois, em 1993, o programa saía da Rádio Comercial, porque não tinha cabimento na nova grelha da rádio. A 3 de Abril de 1998, voltava semanalmente à Antena 2, às sextas-feiras, das 23:00 às 01:00.

O Em Órbita reflecte o novo gosto trazido pela FM de Rádio Clube Português - o dos produtores ligados à elite cultural, numa retoma da tradição que presidiu ao aparecimento da rádio como meio de comunicação. No caso, podemos falar de uma elite da burguesia da linha de Cascais, pois a equipa por detrás da produção do programa vinha dessa origem. Filho do engº Gil, dono do cinema Império (hoje espaço de um culto religioso), Jorge Gil é o mais característico: arquitecto, pintor, melómano e leitor sério de Heidegger, ele experimentou a viragem cultural, passando da cultura da música pop para a música séria. Pedro Albergaria chegou a trabalhar na editora Valentim de Carvalho e foi responsável pela rede de FM de Rádio Clube Português. João Alexandre, de crítico do regime enquanto estudante universitário, passou a homem ligado a empresas até morrer em acidente de viação ao conduzir um carro rápido na marginal de Cascais. Talvez o luto tenha levado Jorge Gil a uma dramatização no programa e o tenha tornado um ícone da rádio portuguesa.

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