Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
domingo, 25 de setembro de 2016
O Rio, de Jez Butterworth
Como se vê pelo cenário, a história parece decorrer em meio rural junto a um rio com falésias. A cabana pertence ao homem, que tinha convidado uma mulher, talvez num fim de semana ou feriado. Há uma mesa central, um fogão e alguns utensílios de cozinha ao fundo, incluindo copos e garrafas, a que se junta um pequeno móvel com livros e um sofá à direita. Perto da porta, utensílios de pesca; por cima da porta, um quadro com um peixe colorido.
Ele não lhe diz que outras mulheres estiveram ali com ele, mas conta a história do tio a que a casa pertencera e que levara para lá namoradas, enquanto a mulher descobre um vestido escarlate, que teria pertencido a uma anterior namorada dele. O homem encoraja-a a ir com ele à pesca, mas ela está mais interessada no pôr-do-sol.
O homem é um pescador com um discurso filosófico, ao falar da truta marisca que pode ser pescada em grande quantidade numa noite sem luar. Incita-a a ler uma poesia para a convencer a ir com ele, pois não está convencida do êxito da saída. Ela acaba por aceitar mas perde-se no caminho, com ele a regressar ofegante e em pânico, e a telefonar para a polícia. Logo depois, ela assume à porta, trazendo uma grande truta mariscada que pescou com a ajuda de pescador furtivo. Aqui, estabelece-se uma distinção entre legalidade e ilegalidade. A mulher acabou por confessar ser especialista na pesca de trutas, o que levanta dúvidas e o irrita.
Segue-se a preparação da truta pelo pescador, depois da namorada ter refletido na injustiça do mundo – até momentos antes, a truta vivia feliz no rio, agora jazia ali para ser digerida. O homem tira as tripas do peixe, abre a água da torneira, descasca batatas e cenouras, põe azeite e leva o prato ao forno, com uma grande perícia do ator (Rúben Gomes) na tarefa. No ar, começa a circular um leve cheiro a peixe assado. Ele podia acrescentar cebola mas o encenador não deve ter querido correr riscos de os odores da cebola se espalharem e criarem problemas ao ator.
A substituição de uma atriz por outras duas atrizes convida o espectador a pensar na linha de repetição das cenas do pescador com mulheres diferentes, uma espécie de ritual onde as memórias antigas se reproduzem nas palavras do homem que recupera e mistura. O passado torna-se diferente como o fluir do rio. Nunca se banha nas mesmas águas do rio do mesmo modo que há ciclos que se repetem na vida. Talvez a peça seja sobre a solidão em que o homem diz que ama a mulher e está à espera que esta responda da mesma maneira. Mas a múltipla representação feminina leva-nos a características diferentes – mais romântica, mais distante, mais ingénua.
[Inspirei-me na crítica do jornal The Guardian, de 27 de outubro de 2012]
O Rio, de Jez Butterworth (nascido em 1969), com tradução de Joana Frazão, atores Rúben Gomes, Inês Pereira, Vânia Rodrigues e Maria Jorge, cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos, assistência de Maria Jorge, coordenação técnica de João Chicó e encenação de Jorge Silva Melo. Fotografia de Jorge Gonçalves. Peça dos Artistas Unidos.
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