Foi ontem ao final da tarde, em ªSede, com António da Silva Oliveira, fundador da Rádio Caos, criador das Edições Mortas, editor de fanzines, plaquetes, folhetos e revistas, responsável pelas Conferências do Inferno, livreiro e performer, obra que atravessa a cultura portuense alternativa desde a década de 1980, e que contou ainda com a presença de Paula Guerra, socióloga da cultura. No vídeo, A. da Silva O. fala da Rádio Caos (apesar de estar na primeira fila, defrontei-me com a presença de uma garrafa de refrigerante que retirou alguma visibilidade ao conferencista).
Do blogue Bicho Ruim, de Rui Manuel Amaral, o programador de ªSede, extraio o seguinte:
"Em meados dos anos 80, o Porto era uma cidade cercada. Não pelo exterior, mas a partir de dentro. A sensação era a de que se vivia afastado de tudo o que de importante estava a acontecer no mundo. O que chegava de fora não era suficiente para aplacar a nossa fome. A rádio, a televisão e os jornais, que para os padrões de hoje pareceriam radicalmente alternativos, representavam o tipo de cultura e informação que era necessário rejeitar. Dentro de muros, a resistência, como sempre, fazia o seu obscuro caminho. Fanzines, plaquetes e boletins, circulavam de mão em mão, nos cafés, nas lojas de discos, nas associações de estudantes e colectividades, numa espécie de samizdat legal. Desenhadas à mão, escritas à máquina, reproduzidas em lojas de fotocópias, em formato A4 ou A5, com mais ou menos páginas, quase sempre a preto-e-branco, as publicações alternativas da época seguiam a estética mais simples do DIY.
Edições sobre música, cinema, literatura, filosofia, política e outros temas impossíveis de classificar, circulavam um pouco por toda a parte, ao preço de custo. Havia de tudo. Boas ideias, bom pensamento, boa produção, mas também exercícios ingénuos e profundamente naïf. O mais importante, porém, era a energia, a potência, a necessidade incontrolável de fazer, mostrar, partilhar, de resistir ao cerco. No meio da avalanche fanzinesca do Porto de meados de 80, destacava-se facilmente o trabalho de alguns autores/editores (a distinção entre autor e editor, na maioria dos casos, não era simples de fazer). António da Silva Oliveira (A. Dasilva O., 1958), não sendo um caso isolado, era um caso único. Publicava e ajudava a publicar. Não apenas fanzines, mas também revistas e livros. E não apenas revistas e livros, mas também projectos ligados aos mais diversos domínios da intervenção cultural e artística. Em 1981, juntamente com Bernardino Guimarães, Daniel Guerra e Luís Guimarães, funda a Rádio Caos, um dos exemplos mais estimulantes do grande fluxo criativo gerado pelo movimento das rádios livres (rádios pirata). A Rádio Caos emitia programas sobre música (do jazz ao pop, do rock mais alternativo à clássica), literatura, ecologia e até radionovelas, escritas e interpretadas pelo próprio Oliveira. A pretexto da Rádio Caos, publicaram-se revistas, organizaram-se concertos, abriram-se espaços de colaboração entre numerosos criadores do Porto e de outros lugares. O amplo lastro deixado pela Caos, impedida de emitir no fim dos anos 80, é algo que está por estudar.
Ainda na década de 80, Oliveira cria as Edições N., a revista Última Geração e, mais tarde, as Edições Mortas, com um extenso catálogo que continua a crescer e que atravessa vários géneros. Em 1994, organiza as Conferências do Inferno, no Ateneu Comercial do Porto, e depois os Encontros com o Maldito, em colaboração com o grupo de teatro Contracena. Em meados dos anos 2000, abre a Pulga, uma livraria dedicada à venda de livros de pequenas editoras, num acto de resistência contra o monopólio das grandes cadeias de distribuição. Actualmente, edita e dirige as revistas Piolho e Estúpida. Em cerca de 40 anos de contínua produção, António da Silva Oliveira impôs uma marca indelével e sem paralelo na cultura e contracultura da cidade. Uma parte importante da edição alternativa e independente, que vive hoje um momento de particular dinamismo, é devedora do trabalho pioneiro, exigente, insubmisso e heterodoxo de Oliveira e do seu grupo de colaboradores. Um trabalho que, de forma assumida pelo próprio ou em resultado da acção cega dos diferentes poderes políticos, culturais e académicos, foi sempre mais visível a partir da margem. A margem, que é onde tudo começa e onde tudo acaba".
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