Claude Monet pintou a catedral de Rouen em diversas horas do dia, de modo a obter diferentes impressões de cor. Na fotografia, Bernardino Pires usou um princípio próximo - o da usura do tempo num espaço.
Das imagens já publicadas pelo filho, Daniel Pires, há duas séries retratando mulheres: na estação ferroviária de S. Bento e nas arcadas da Ribeira do Porto. Fico-me pela primeira série. Na fotografia inicial, duas mulheres ainda jovens conversam. Muito serena, a mulher à direita parece estar a confessar um pormenor mais íntimo da sua vida - talvez a pedir um conselho à outra mulher. Elas estão sentadas junto a um pilar da entrada da estação e o fotógrafo indica-nos um pormenor, a do sítio onde elas se sentam: cestos fortes de verga onde transportam certamente produtos domésticos ou alimentares. Mas o maior enquadramento vai para a imagem de azulejos da estação. Uma análise superficial pareceria indicar que a atividade das mulheres se ligaria ao rio ou ao mar, mas a estação ferroviária não é rota para qualquer das áreas, exceto numa zona longínqua, a de Viana do Castelo. Olhando melhor a imagem de azulejos, vejo dois motivos: transporte de pessoas, com um guarda-chuva a despontar, transporte de mercadorias de praia ou de encosta com uma parelha de bois a ajudar a transferência desses bens. O vestuário das mulheres pode configurar esta minha hipótese. À falta de melhor descrição chamo-as de minhotas: o lenço, o avental, as cores percecionadas da roupa.
Não tenho ainda informação sobre o modo como Bernardino Pires fotografava: com tripé? Com que tipo de máquina? Portátil? A fotografar de modo discreto ou quase clandestino? Qual a diferença entre o que ele queria fotografar e o que aparece na imagem?
A segunda fotografia alarga o ângulo de visão. Uma das mulheres, a que parecia estar a confidenciar, está de pé, e veem-se duas outras mulheres que parecem fazer parte do mesmo grupo, dadas as semelhanças de vestuário, além de uma criança. A imagem revela-nos que estão no átrio da estação mesmo junto à porta de entrada para a gare dos comboios. Talvez a hora de partida esteja a aproximar-se e a mulher levantou-se.
Na terceira imagem, duas das mulheres e criança desaparecem de cena, a indicar movimento para o comboio ou saída para obter informações sobre horários. A fotografia revela um pormenor delicioso. A mulher a vestir roupa menos tradicional abaixa-se e pega num garrafão: vinho? azeite? O comboio deve estar pronto a partir, pois se observa movimento na entrada para a gare. Nas duas últimas fotografias, à entrada da gare, está um polícia no mesmo sítio, o que pode indicar que as fotografias teriam sido feitas quase umas atrás das outras, como se fossem instantâneos.
Por conseguinte, a decisão de fotografar é imediata, mas o fotógrafo não perde de vista os seus objetivos principais: o painel de azulejos e as mulheres em viagem. A conversa, a espera e o momento de partida estão bem patenteadas nas imagens. O comboio que não se vê poderia ser um movido por uma máquina a carvão (a vapor), como outras fotografias de Bernardino Pires mostram.
Desta análise, ficou-me uma pergunta: e os homens onde estão? Pela divisão social de tarefas existente à época, a atividade exercida pelas mulheres era doméstica - compras. Ou uma outra hipótese: visita a um familiar doente ou internado no hospital.
Mas há um tempo sereno de espera, sinal que hoje não encontraríamos: a estação de S. Bento, no Porto, como a do Rossio, em Lisboa, é (são) porta(s) de acesso a uma população flutuante e diária entre emprego na cidade e habitação nos subúrbios urbanos. O vestuário à minhota e os cestos de verga fazem parte da história de há sessenta setenta anos. A fotografia é um meio privilegiado de se estudar uma sociedade e um cultura. Bernardino Pires foi um bom observador dos costumes, combinando tempo e espaço com harmonia. Julgo, assim, muito útil contribuir para a divulgação de uma obra que não é mero trabalho de amador.