MEMÓRIA JORNALÍSTICA - II
“Retiniu a campainha do telefone e o contínuo da Tarde veio dizer-me que o sr. Hintze Ribeiro chamava ao aparelho o sr. Urbano de Castro ou o sr. Alberto Bramão… Ausentes um e outro, fui eu lá. Mas o assunto, explicou Hintze Ribeiro, não podia ser tratado pelos fios. Desci imediatamente ao Terreiro do Paço e, minutos depois, era recebido pelo grande estadista da monarquia, então chefe de governo.
“Já o tinha visto no parlamento em dias de sessão agitada, admirava a fria correcção da sua atitude ao usar da palavra – a dextra enfiada na abertura da sobrecasaca – mas, nunca dele me aproximara, talvez intimidado por esse duro aspecto fisionómico que, entre Hintze Ribeiro e a grande maioria dos seus interlocutores, cavava um abismo. Recebeu-me com afabilidade e em rápidas palavras expôs o que queria do jornal.
“«Numa eleição suplementar, realizada dias antes, a votação do candidato progressista fora torpedeada pelo cacique regenerador. Reclamação indignada do chefe progressista e ele, Hintze, ordenara um inquérito, absolutamente disposto a fazer justiça. A Tarde devia noticiar o facto, em artigo de primeira página, e salientar que se, em vez de Hintze Ribeiro, estivesse no poder José Luciano de Castro e o chefe regenerador representasse contra falcatruas eleitorais praticadas por magnatas progressistas, decerto não seriam tomadas tão enérgicas providências como ele, Hintze, acabava de tomar».
“Ouvi silencioso e voltei para a redacção a pensar que os homens de uma elevada categoria mental não são isentos da mesquinhez que os pode nivelar ao comum dos mortais. Naturalmente, José Luciano, se se encontrasse na mesma situação de Hintze Ribeiro – assediado por uma reclamação eleitoral – não deixaria de proceder de igual modo (ordenando o inquérito), quanto mais não fosse para dar a impressão de que atendera o reclamante. Aquele confronto, que Hintze Ribeiro requeria na primeira página da Tarde, destinava-se simplesmente a produzir um determinado efeito de política partidária e com ele o grande estadista monárquico também argumentaria quando sobre o assunto o interpelassem no parlamento”.
Extraído de: Jorge de Abreu (1927). Boémia jornalística. Lisboa: Livraria Editora Guimarães, pp. 25-26
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