AS NOTÍCIAS DE MAIO DE 1974 - III
O aparelho ideológico do Estado estava apanhado pela grande vaga de transformações, como se percebe das notícias que envolveram as estações de rádio e televisão. A Rádio Renascença (RR) passava a ser dirigida pelos trabalhadores, em regime de autogestão e com readmissão de noticiaristas, tudo dentro dos princípios da doutrina cristã. Os trabalhadores da mesma estação mostravam-se contra a administração, cedendo o Patriarcado quanto à liberdade informativa e ao processo autogestionário. Depois, dava-se a ocupação militar das instalações da RR, por “um grupo de extrema-esquerda querer ocupar os estúdios”. Botelho Moniz, o proprietário do Rádio Clube Português (RCP) – emissora donde partira a senha musical para o movimento dos capitães que derrubou o regime – foi recebido em Belém, enquanto se processava a demissão de directores e funcionários da mesma estação, que colaboraram com a Pide. A manutenção da administração fez crescer a contestação, o que levou funcionários e administração da estação ao palácio de Belém. No mesmo dia, a direcção da rádio ficava entregue a uma administração eleita, com um delegado da JSN a fazer a ligação entre a direcção e a administração. Este delegado içaria a nova bandeira do RCP – Rádio da Liberdade ao lado da bandeira nacional. Dias depois, dois ministros (Pereira de Moura e Raul Rêgo) recebiam a comissão do RCP, denotando o processo complexo que se vivia na estação. Por seu lado, as estações dos Emissores Associados de Lisboa, como a Rádio Peninsular e a Rádio Voz de Lisboa, entravam em luta.
Se a Emissora Nacional considerava que “o stock de discos será renovado de forma a dar a conhecer toda a música ligeira nacional”, um comunicado da RTP defendia o “absoluto respeito pelas correntes de opinião, venham elas de onde vierem, e dando a todas, da direita ou da esquerda, as mesmas possibilidades”. Isso obrigou a direcção de programas a entrar “em reflexão”, que a divulgou num outro comunicado. Em esclarecimento, o chefe de repartição dos programas musicais da Emissora Nacional proibia a orquestra de tocar o hino nacional em S. Carlos, “para não banalizar o hino”.
Por seu lado, o aparelho militar e policial procurou a mudança de imagem, para adaptação aos tempos. A GNR queria ser “para todos uma presença amiga”. O comando distrital de Lisboa da PSP pretendia estar ao serviço da população, “uma Lisboa onde os seus habitantes vivam em paz, com alegria, e no respeito de liberdade dos outros”. Abolição, insubordinação, queixas – os jornais funcionavam como porta-vozes das ideias e dos projectos dos descontentes e reprimidos do país, as vozes populares das notícias. Se a censura perseguiu a imprensa durante cinquenta anos, os acontecimentos de Abril de 1974 conferiram aos jornais uma auréola de prestígio e legitimaram a sua representação nos novos valores. Aos jornais queixavam-se os moradores de um bairro de lata, porque as casas para o seu realojamento estavam a ser ocupadas por outros. Os jornais também eram veículo das mensagens de grupos de trabalhadores que acorriam “à sede do PS, pedindo apoio para a solução dos seus problemas”. Outros sentimentos tinham lugar nos jornais, caso da notícia do escritor Costa Mendes, que morreria de comoção à chegada a Lisboa do exilado Álvaro Cunhal.
Notícias sobre as greves
As greves constituem um tópico fundamental nas notícias de Maio de 1974. Fizemos uma leitura qualitativa das notícias (e não quantitativa). Pelas notícias, parece que todos os sectores produtivos e de serviços entraram em greve. Duas delas, ocorridas no período descrito no livro, mereceram a nossa particular atenção.
A primeira foi a dos padeiros. Numa manifestação, os padeiros gritam: “O Tarrafal não acabou. Existe nas padarias! Queremos dormir com as nossas mulheres! Padeiros unidos jamais serão vencidos”. Para o presidente do sindicato dos padeiros, seriam identificados dois indivíduos que, durante a manifestação, propuseram a greve: “um fez parte da anterior direcção sindical fascista e o outro é colaborador do patronato”. Contudo, haveria mesmo greve do pão, como noticiaram os jornais, embora com “furos na greve”, quando indivíduos entraram numa padaria e propuseram fazer pão, o que os levou a serem presos. A greve ultrapassara o sindicato. Num processo contraditório, outra notícia refere que os trabalhadores das padarias em greve decidiram voltar, por um dia, a confeccionar o pão estritamente necessário. Uma outra notícia salienta que os dirigentes sindicais de panificação “não apelaram à greve nem a apoiaram, (sendo) a greve instigada do exterior”. Para o grémio da panificação, a greve era atribuída a elementos de extrema-esquerda, o MRPP. Os padeiros voltariam à actividade normal “para não prejudicar as populações”. Uma invasão em padaria de Lisboa serviu para “aproveitar a massa que se estragaria”, enquanto se verificava uma luta entre grevistas e “estranhos fura-greves”. A última notícia da greve dava conta do apelo dos padeiros à população para comprar apenas o pão indispensável.
A segunda greve foi a da cobrança de bilhetes, por parte dos trabalhadores de camionagem, da região de Lisboa. O ministério da Comunicação Social apelou a que estes trabalhadores abandonassem a ideia de não cobrar bilhetes. Os trabalhadores da Carris recuaram, graças a uma consideração pertinente, a que deram a palavra de ordem “não há viagens de borla”. Eles queixaram-se que, “na última greve, fomos gozados (...) As pessoas invadiam os autocarros e viajavam de cá para lá e de lá para cá. Andávamos a passeá-los, era o que era”. Enquanto os funcionários da Sociedade Estoril mantinham reivindicações e também não cobravam bilhetes, o pessoal da ponte sobre o Tejo deixava de cobrar a portagem à meia-noite, mas, no dia seguinte, os postos de portagem voltavam à normalidade.
Numa greve dos trabalhadores da Sociedade de Parafusos de Cabo Ruivo surgia uma reivindicação local e específica: a “possibilidade de as mulheres irem à casa de banho sempre que necessitem e colocação de sanitas nas casas de banho”. Apesar de situada na cintura industrial de Lisboa, as condições higiénicas de trabalho indiciavam um Portugal arcaico. Infelizmente, muitos anos depois, as autorizações para ir à casa de banho continuavam a representar matéria reivindicativa em diversas empresas do país.
Um outro tópico interessante para vermos as transformações de mentalidade é o do desporto. Logo no princípio do período histórico a que o livro se refere, o Benfica é recebido pela JSN, a quem informa que contribuirá como escola de virtudes. A direcção do Sporting também é recebida pela JSN e propõe à Federação Portuguesa de Futebol a vinda da selecção russa de futebol. Os clubes queriam estar com o novo poder. No F. C. Porto, uma assembleia marcada só conseguiu discutir política em vez de desporto.
Uma notícia destacaria a perda de importância do futebol, embora os campeonatos estivessem emotivos. A ocupação do sindicato dos treinadores de futebol, a indicação que os futebolistas profissionais “coligem” reivindicações, a nomeação de delegados sindicais dos jogadores de futebol e a adesão do sindicato dos jogadores à Intersindical mostram alguns dos movimentos políticos de jogadores e outros profissionais. Hoje, isto parece-nos estranho, dados os volumes monetários envolvidos na actividade desportiva e a circulação de personagens como “empresários”, sociedades anónimas e “off-shores”, de intenso “lobbying”.
[continua]
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