sexta-feira, 4 de junho de 2004

BLOGUE EM FÉRIAS

O responsável do blogue vai tirar uns dias de descanso. Volta na segunda metade de Junho. Até lá, esperamos que continuem a dedicar-nos a mesma atenção. Consultem também os nossos blogues favoritos.

AS NOTÍCIAS DE MAIO DE 1974 - IV

Houve mudanças também nos horários de trabalho. Os armazéns Braz e Braz passavam a fechar aos sábados à tarde, de Maio a Outubro. Os barbeiros e cabeleireiros estendiam tal regalia a todo o ano. A Cancan-Naia-Primaz informava os clientes que abria às segundas-feiras, pelas quinze horas, “para prolongamento do descanso semanal dos empregados”. A pedido dos trabalhadores, o jornal A Capital deixava de se publicar aos domingos, o mesmo ocorrendo ao Jornal do Comércio e Diário de Notícias.

Nas notícias, parece que cada agente social, por todo o país, tem qualquer coisa a fazer e a dizer. Quando há sete mil bancários ou cinco mil ferroviários em reunião, a massificação esconde o desejo de cada pessoa gritar a sua mensagem, dar a sua opinião. A leitura do retratado em Maio de 1974 lembra as leituras da movimentação social e política da Primeira República. Mas com uma diferença pública, pelo menos: a das relações entre poder político e Igreja. Os ministros visitam os responsáveis religiosos (caso do cardeal de Lisboa), estes retribuem as visitas aos políticos, esquecendo o espírito jacobino do começo do século XX.

As actividades políticas, sindicais, sociais e culturais pareciam tão intensas que poderíamos falar de homens sem sono. Naquele período, muitos dos intervenientes pouco terão dormido, dada a pressão do dia-a-dia e das constantes alterações da conjuntura. Mário Soares, por exemplo, regressava de um rápido périplo por Inglaterra, Alemanha, Finlândia, Bélgica e Itália, onde dera “conta da nova situação portuguesa”. Outra notícia destacava o decréscimo de visitas ao Palácio de Belém, sendo as pessoas encaminhadas para os vários ministérios. Por dia, era grande a lista de pessoas e entidades recebidas pela JSN e por Spínola. O momento inicial de mudança de poder estava a terminar, com a criação de novos canais de comunicação.

Anúncios de restaurantes

Para terminar a nossa incursão nas múltiplas notícias editadas em Maio de 1974, mostramos aquelas cujo valor-notícia mais relevante é a do insólito. Um tópico foi o da publicidade dos restaurantes junto à Cova da Moura, onde o novo poder instalara o seu quartel-general. “Restaurante Cova da Moura. Gostaria de comer boa carne? Então venha ao nosso restaurante e peça o delicioso fondue. (...) Restaurante, snack-bar, barbearia, tabacaria. Estamos mesmo junto ao palácio militar da Cova da Moura”. “Cervejaria Napoleão. Gostaria de comer bons mariscos? Então venha à nossa cervejaria. Aberta até às 3:30 da manhã. (...) Estamos mesmo junto ao palácio militar da Cova da Moura”. Dado o afluxo de visitantes ao quartel seria previsível o sucesso dos restaurantes da zona, nesse período.

Uma notícia distinta referia um comunicado dos trabalhadores dos mercados camarários de Lisboa: “levar para a frente a ideia inicial de criar um ambiente de fraternidade do trabalho nos mercados; afastar definitivamente os egoísmos”. Um comunicado do movimento democrático de artistas plásticos defendia que “a arte fascista faz mal à vista”. Outra notícia curiosa seria a da manifestação de deficientes motores internados no centro de reabilitação da Areosa (Porto) contra as condições em que viviam: alimentação, proibição de fumar, proibição de sair com colegas do sexo oposto. Um grupo de mulheres reunidas numa creche da CP avançava com uma ameaça original, a de “greve sexual”, enquanto os trabalhadores da Electrolux acabavam a sua greve por solidariedade com o governo provisório.

A nova situação aconselhava a que alguns eventos mundanos ou públicos tivessem uma realização mais discreta. Por exemplo, a Miss Portugal, uma moçambicana, seria eleita em segredo, no hotel Sheraton, à porta fechada, com 60 convidados. Em Aveiro, nas festas de Santa Joana Princesa, o programa foi mais modesto que o habitual: “missa solene, exposição de relíquias, mas não haverá procissão”. Ao invés, um comunicado da JSN informava que “as restrições de gasolina em vigor serão levantadas durante o próximo dia 12 de Maio para tornar possível as comemorações em Fátima no dia 13 de Maio”.

Apelava-se também a uma regeneração de costumes. Numa notícia, pedia-se aos coleccionadores de recordações fascistas que as dessem à JSN. Aplaudiam-se regras, quando delas se gostasse: sobre a classificação etária dos filmes, as crianças, se acompanhadas podiam ver filmes para idades superiores, excepto nos filmes para maiores de 18 anos. E também surgiam novas oportunidades de negócios: várias agências de viagem anunciavam viagens à Rússia, um destino sempre proibido.

Conclusões

Atrás, deixamos algumas pistas para a leitura do livro. Mas não conseguimos responder a algumas questões. Que estratégias de comunicação veiculam as notícias editadas em Maio de 1974? Como reagiam os leitores à catadupa de informações sobre um país diferente? Como foi a aprendizagem da nova realidade? Quantas das intenções incluídas nas notícias se tornaram realidade?

Notamos uma profusão de conferências de imprensa, de comunicados, de notas como formas de promoção dos acontecimentos. A par de figuras políticas emergentes, muitas das quais chegaram aos nossos dias, salientaram-se as vozes populares. O movimento social tornava-se imparável.

Outra conclusão que podemos tirar é que, a partir de Maio de 1974, os jornais desenvolveram uma nova área de especialização (o chamado newsbeat): as lutas e movimentos operários, sindicais e sociais. Criava-se o jornalista correspondente de trabalho. Nesse ano e nos seguintes (até à adesão à União Europeia e à primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1985), as questões laborais, em secção própria, constituiriam parte importante das notícias, com destaques de primeira página, reportagens e entrevistas.

A oportunidade de falar sobre este livro conduz-nos à necessidade imperiosa de trabalhar na história das mentalidades, gostos e costumes do Portugal contemporâneo, com observação das mudanças e do seu impacto no tecido social nacional, através das notícias e de outros tipos de fontes (livros, memórias escritas, história oral). A História dos media jornalísticos portugueses está quase toda por fazer.

Créditos de autoria do livro Maio’74 dia-a-dia (por ordem alfabética): Alessandra Bálsamo, Alexandra Correia, Ana Campos, Ângelo Teixeira, Aurora Teixeira, Bruno Cordovil, Bruno da Ponte, Clara Boléo, Clara Pereira, Eduarda Dionísio, Fernanda Abreu, Francisco Frazão, Gabriela Coelho Dias, Graça Pinto Leite, Helena Barradas, Idalina Portugal, Isabel Duarte, Joana Frazão, Joana Sousa, João Martins Pereira, Manuela Torres, Manuela Vasconcelos, Manuel Canário, Manuel Videira, Maria Antónia Bonito, Maria da Conceição Lobo Antunes, Maria Letícia Clemente da Silva, Nuno Vasco, Olímpio Ferreira, Pedro Rodrigues, Vanessa Pimentel (recolha de informação), Vítor Ribeiro (recolha de documentos e de imagens, revisão, paginação, edição e impressão).

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