sábado, 5 de março de 2005

OITENTA ANOS DE RADIODIFUSÃO EM PORTUGAL?
E PORQUE NÃO OITENTA E UM?


No dia 1, o Diário de Notícias editou, no guiaDN, três páginas intituladas Os dias da rádio. Há 80 anos começavam as emissões regulares em Portugal [na imagem, microfone de CT1AA, um dos pioneiros da rádio em Portugal. Gentileza do Museu da Rádio].

Nessas páginas, surgem duas peças assinadas pela jornalista Ana Pago, uma sobre o programa Oceano Pacífico, da RFM, e outra sobre o Museu da Rádio. A meu ver, duas belas peças - em especial a dedicada ao museu da rua do Quelhas, o ano passado tão publicitado por se temer o seu fim.

As duas peças da jornalista não referem uma só vez a data dos 80 anos da radiodifusão. Aliás, numa das citações atribuidas a Alexandra Fraga, do Museu da Rádio, lê-se: "Convivemos diariamente com 90 anos da história da rádio portuguesa".

Eu fora alertado pelos blogues da rádio, nomeadamente por um post de A Rádio em Portugal, chamando a atenção para notícias publicadas no Comércio do Porto e Diário de Notícias. Coloquei lá um comentário e parti para a investigação. A estranheza é: porquê o título apontar para 80 anos de radiodifusão em Portugal? A dúvida é: e porque não oitenta e um anos?

A minha defesa

No livro de Gordon Bussey (1990), Wireless. The crucial decade, 1924-34, escreve o autor que, no começo de 1924, as estações de rádio existentes emitiam com baixa potência, exceptuando "5XX e, curiosamente, Portugal" (pág. 25). Bussey não referencia o nome da estação portuguesa, e inclusive pode ter a data errada no respeitante à nossa emissora.

A revista Rádio Lisboa Magazine, de Junho de 1925, destaca que, em finais de 1923, foi pedida regulamentação para TSF, isto é, autorização para emitir rádio. E conta a história do amador Sousa Dias Melo - proprietário da mesma revista - que faria, alguns meses mais tarde, a primeira emissão radiofónica, mesmo sem legislação aprovada. Isto num pequeno emissor de 50 watts de potência mas chegando a ouvir-se a quatrocentos quilómetros de distância. A data 1924 não aparece no texto, mas um documento pessoal do mesmo amador assinala esse ano como o começo da sua actividade.

Trata-se de um pedido de renovação da licença de radioamador, feita em 1947. Nesse pedido, ele salienta que os seus trabalhos, "em matéria de radiocomunicações, [com] uma estação própria, datam de 1924". O mesmo radioamador escrevera noutra ocasião: "O funcionamento da estação emissora experimental que possuo desde Julho de 1924 com o indicativo internacional de chamada CT1AB, que me foi fornecido pela Rede dos Emissores Portugueses, de que sou filiado. [...] Trata-se efectivamente da primeira estação nacional de amador [de] emissões musicais, ouvidas naquela época em muitos pontos do país" (texto citado no meu artigo Nos 75 anos de emissões regulares de rádio - histórias de pioneiros, editado pela revista Observatório, em 2000).

Na página 118 da revista TSF em Portugal, correspondente à edição de 28 de Dezembro de 1924 - que se visualiza, na sua totalidade, no blogue Rádio em 1924 - lê-se: "1PAA tem feito interessantíssimas experiências tendo já por diversas vezes transmitido concertos que têm agradado imenso a todos os que o têm ouvido tanto em nitidez, como em intensidade" (esta e cópias de outros documentos da época podem ler-se em dimensão grande no mesmo blogue, imagens alojadas no sítio A Minha Rádio, do meu caro amigo António Silva, do Porto, a quem agradeço a gentileza).

Curiosamente, Abílio Nunes dos Santos Júnior, com o indicativo CT1AA (inicialmente P1AA), considerado pioneiro da radiodifusão no nosso país, em documento também feito em 1947, para renovação da licença de radioamador (como acima indiquei para Sousa Dias Melo), não refere correctamente a data de início de actividade, avançando para 1926.

A meu ver, a razão é uma falha de memória. Ou, então, porque queria agradar à entidade licenciadora, lembrando 1926 como a data da fundação do regime.

Os erros

O facto de terem sido publicadas notícias comemorando os 80 anos de radiodifusão em Portugal no passado dia 1 não é muito grave em si. Recordou-se a história da rádio e deu-se relevo ao belo espaço que é o museu da Rádio, propriedade da RTP. Não se pode imputar o erro à jornalista, que escreveu muito bem sobre o tema.

O problema deve atribuir-se à falta de estudos sistemáticos sobre a história da rádio e dos media em geral no nosso país. Eu próprio, no texto que escrevi em 2000 acima referido, questionei as datas de início e apresentei uma proposta. Reconheço agora que ela também não estava certa. Até então, o começo da radiodifusão era considerado em Outubro de 1925, nomeadamente no livro de Matos Maia (Telefonia, 1995), até hoje o livro mais completo que temos no país, e no catálogo do RDP (60 anos de rádio em Portugal, 1925-1985, lançado em 1986).

Fantasiara-se até que o princípio da radiodifusão estava atribuido a Fernando Medeiros, com a sua rádio Hertz, em 1914. Mas a experiência, que o próprio relatou anos depois, não pode considerar-se radiodifusão. Na época, o procedimento habitual era iniciar-se em radiotelegrafia (sinais Morse), passar-se a radiofonia (voz) e, havendo dinheiro e vontade, chegar-se à radiodifusão. Foi o que fizeram CT1AA e CT1AB, que eu referenciei no cimo deste post [na imagem, datada de documento escrito em 1933, vê-se o esquema do emissor de CT1AB. Aí, são visíveis o microfone e a chave Morse, mas não há uma entrada para gira-discos. Possivelmente, representa um regresso à radiofonia do antigo radiodifusor]. Os primeiros programas de radiodifusão - embora não seja correcto empregar-se o termo programação para esse período - seriam concertos de música clássica ao vivo, numa espécie de continuidade dos concertos em sala, mas chegando a muito longe, aos lares, através das ondas do éter. Os radiodifusores amadores procuravam ter uma continuidade no tempo, a exemplo das temporadas de música lírica. Assim, o sábado e a quarta-feira eram dias habituais de transmissão. No resto do tempo, as emissoras estavam em silêncio.

Repito: o erro não pode atribuir-se à jornalista, mas a quem lhe forneceu a informação. O ônus recai sobre os historiadores. Se quisermos, embora haja analogias entre os dois tipos de profissionais, existe uma diferença fundamental: o jornalista é o historiador do efémero e do presente; o historiador procura como se fosse um jornalista de investigação, cotejando fontes e referências, em trabalho de longa duração, e confrontando-as em redor da verdade e da exactidão. Não havendo dados exaustivos e correctos, o trabalho do jornalista que escreve sobre história não acaba bem.

Observação: dedico esta mensagem ao Museu da Rádio e aos blogues que escrevem sobre este meio de comunicação. Os contributos de todos são importantes para fazer e ampliar a nossa memória cultural.

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