terça-feira, 1 de novembro de 2005

NÃO PODERIA ESTAR MAIS DE ACORDO COM EDUARDO CINTRA TORRES

No domingo passado, no seu texto saído no Público (coluna "Olho Vivo", p. 57), perguntava Cintra Torres: "Por que raio se chama jornalista ao transeunte que faz umas imagens no metro de Londres e não à velhota que telefona para a SIC a dizer que há mais um incêndio no seu concelho"? Hoje, concluindo o mesmo texto (coluna "Olho Vivo", p. 43), Cintra Torres é mais incisivo: "Por captar imagens de água invadindo Pukhet o turista não é jornalista, da mesma forma que, ao atender o telefone, o Presidente da República não é telefonista. Quem compra tábuas no Ikea e monta o móvel em casa não é marceneiro, quem faz uma transferência bancária numa ATM não é empregado bancário e quem enche o depósito de combustível em auto-serviço não é gasolineiro. Quer dizer, não tem essa profissão".

Ora, de que fala Eduardo Cintra Torres? Do jornalismo, da profissão de jornalista, saber que, desde o século XIX, se tornou "uma actividade fundamental à sociedade democrática", com técnica, arte, ética e estatuto, e que se realiza "após estudo académico. Desta forma, há cidadãos que investem anos de vida para adquirir a possibilidade de exercer a profissão de jornalista".

E contra quem fala Eduardo Cintra Torres? Do exercício de fazer imagens e de as dotar (ou ver alguém dotá-las) de importância. Esclarece que as pessoas que fornecem imagens sobre calamidades naturais ou eventos terroristas - e, assim, contribuem para a notícia -, dificilmente podem ser designadas como jornalistas (texto de anteontem); são apenas fontes de informação. Considera ele que o jornalismo não é a "tecnologização" da função do informador e este não se torna jornalista pelo facto de participar no espaço público (texto de hoje).

Os blogues

Os blogues correm como pano de fundo dos dois artigos do professor, escritor e crítico de televisão. Se, no primeiro, contraria o messianismo de textos como o de Dan Gillmor (Nós, os media, 2005), para quem "as crescentes literacia mediática e possibilidade participativa das pessoas no «espaço público» através dos novos e velhos media levaram ao desenvolvimento do conceito de cidadão-jornalista", no texto de hoje enaltece as funções do jornalista: "estruturação, selecção, equilíbrio, factualidade objectiva, confirmação de fontes, estilo, responsabilidade, ética, serviço ao público".

Logo, o jornalismo exerce-se como profissão e a blogosfera será, porventura, o espaço público aberto a "vozes interessantes e talentosas", que "permitiram que não se perdessem informações verdadeiras que os media tradicionais, para sua vergonha, calam". Mas estas vozes são uma minoria, com a maioria a não ultrapassar a mediocridade dos media tradicionais [curiosamente, ontem, Fernando Ilharco, na sua coluna quinzenal no Público, chamava a atenção para este fenómeno, alargando-o à leveza de programas de televisão, como Morangos com açúcar e ao lançamento de uma banda musical dentro desse programa, de que não se sabe bem se tocam e cantam eles mesmos, numa virtualidade e evanescência próprias de meios electrónicos].

O penúltimo parágrafo de Cintra Torres é elucidativo: "o blogue repete a explosão da imprensa no século XIX, quando surgiram por todo o mundo ocidental milhões de novos jornais e jornalinhos, muitos feitos por uma ou duas pessoas e de que só sairam um ou dois números. A nossa Biblioteca Nacional é um cemitério dessa magnífica explosão comunicacional do indivíduo oitocentista, desse iluminado «cidadão-jornalista» e dos seus blogues em papel".

Um senão relativamente ao texto de Eduardo Cintra Torres

O jornalismo profissional arrancou dessa multiplicidade de vozes, do experimentalismo em que cada indivíduo se embrenhou. As regras não eram pré-existentes mas foram-se fazendo. Muitos jornalistas foram-se realizando enquanto colaboravam nos jornais. E também as profissões dentro do jornalismo. Por exemplo, o repórter, em Portugal e no final do século XIX, não tinha o estatuto de jornalista e a caixa de previdência (ou segurança social, como queiramos dizer) partiu de uma plataforma inferior do que a dos jornalistas (melhor: escritores, que escreviam artigos de opinião, muito poucas vezes com relação a factos verdadeiros e actuais). Os jornalinhos eram, frequentemente, alforge de inovações de secções, com os melhores elementos a passarem-se para jornais mais importantes. Recordo, porque a estudei, a carreira de Alberto Bessa: debutando em jornalinhos do Porto, chegou a director do Jornal do Comércio e das Colónias, em meados da segunda década do século XX.

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