AS PRIMEIRAS PÁGINAS DOS JORNAIS
Luís Trindade fez publicar agora um livro-álbum intitulado 1ªs páginas. O século XX nos jornais portugueses.
Para além de um texto de introdução, o autor olha alguns dos acontecimentos marcantes do século XX português através das primeiras páginas dos jornais mais importantes ao longo do período. A introdução ("Olhar os jornais, o olhar dos jornais") identifica a postura do historiador dos media: ele enuncia o jornalismo informativo como uma nova forma de fazer jornalismo desde os dinais do século XIX, mormente a partir do ultimato de 1890 (quando começa o novo século político, 26 anos após o nascimento do Diário de Notícias, dez anos após o surgimento do Século, os dois principais periódicos nacionais, melhor designados de jornais de referência).
Jornalismo informativo ou "novo noticiário universal", apto a ser lido por uma sociedade mais moderna, com mais gente alfabetizada e a trabalhar nos serviços e a viver na grande cidade, era, por outro lado, um jornal feito por todos, um espelho do quotidiano, como nos esclarece Luís Trindade (p. 12). De que a edição inicial do Diário de Notícias nos dá conta, com uma narrativa homogeneizadora, desfrutada por uma nova entidade abstracta, o público, que, assim, obtinha a "verdadeira interpretação dos factos" (p. 16).
Numa análise estruturalista e que combina interesses específicos do autor, Luís Trindade apresenta o jornal do dealbar do século XX como tendo três áreas fundamentais: 1) noticiário, que ocupava a primeira e segunda páginas, 2) folhetim, em capítulos diários, colocado no final da primeira página, 3) publicidade, que preenchia as duas últimas de quatro páginas dos jornais de então (p. 21). Para justificar esta divisão, o autor socorre-se do que o Século escreveu no primeiro dia de 1901: "O Século entra hoje no seu 21º ano de publicidade" (p. 23).
Dos acontecimentos seleccionados (cronologia nas pp. 215-219), separo os de 1908 (regicídio de D. Carlos I e princípe herdeiro), 1917 e 1918 (partida do Corpo Expedicionário português para a frente da batalha da I Guerra Mundial, golpe e assassinato de Sidónio Pais, aparições em Fátima), 1926 (golpe de Estado e ditadura), 1936 (X aniversário da ditadura e começo da Guerra Civil de Espanha), 1961 (tomada do navio Santa Maria por Henrique Galvão, que passara de colaborador a opositor do regime, início da guerra colonial, golpe de Botelho Moniz e tomada de Goa e outros territórios portugueses pela União Indiana), 1974 (golpe de estado que derrubou a ditadura) e 1999 (eleições e massacre em Timor-Leste).
O livro, como indica o autor na introdução, é um assumir de acontecimentos marcadamente políticos, com apresentação das primeiras páginas dos jornais. Há uma personalidade central retratada: Salazar, o político que comandou os destinos do país desde finais dos anos de 1920 até 1968. Com a possível oposição: Norton de Matos em 1949 (p. 112) e Humberto Delgado em 1958 (p. 128). Em que os jornais se identificam com três orientações políticas e ideológicas - jornalismo apologético do regime (Diário da Manhã), jornalismo de referência (Diário de Notícias, O Século) e jornalismo oposicionista (República) (p. 76). O autor avalia ainda a importância de capas em jornais mais antigos, como A Voz e As Novidades, jornais menos antigos mas que também já desapareceram, como Diário Popular, Diário de Lisboa e Jornal Novo e, dos mais recentes, Correio da Manhã e Público (e do ainda existente Jornal de Notícias).
Para além das reflexões do texto suculento mas breve que ocupa a parte inicial deste magnífico livro-álbum, e acima descritas, a tecnologia e o modo de usar as primeiras páginas são algumas outras perspectivas. Para o autor, "A veêmencia dos seus títulos e imagens dramatiza, todos os dias, o quotidiano" (p. 28). A proposta editorial de Luís Trindade é dupla: 1) vê o século XX em Portugal por intermédio de alguns acontecimentos políticos mais marcantes, 2) o que os jornais deram (ou não deram) aos seus leitores. Esta é a vantagem do livro - ser muito claro e conciso mas profundo no que estuda - e a sua falha - a ausência de uma leitura mais prolongada dos fios que aqui deixa impressos, pelo que se pede ao autor mais elaboração e continuidade da matéria. Falta a análise a jornais importantes para além do Diário de Notícias e O Século.
Luís Trindade é investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou este ano com a tese O estranho caso do nacionalismo português. O salazarismo entre a literatura e a política. Publicou O espírito do Diabo. Discursos e posições intelectuais no semanário O Diabo, 1934-1940 (Campo das Letras, 2004) e O terceiro português - fotobiografia de António Silva (Círculo de Leitores, 2002). Irá publicar nesta última editora O Vasco - fotobiografia de Vasco Santana. No final do ano passado, coordenou, juntamente com António Pedro Pitta, o volume Transformações estruturais do campo cultural português. E, com o mesmo autor, coordenou o seminário de Cultura de massas em Portugal no século XX (realizado na Universidade Nova de Lisboa), preparando uma nova série a começar em finais de Outubro próximo [recupero um vídeo em que Luís Trindade destaca a importância deste seminário, em mensagem que coloquei a 3 de Abril último, como se vê em baixo]. Presentemente, Luís Trindade está a fazer pesquisa para um pós-doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
O livro 1ªs páginas. O século XX nos jornais portugueses é editado pela Tinta-da-China, tem 224 páginas e custa €44.
1 comentário:
Trabalho com o jornal O Primeiro de Janeiro, e sei que ele hoje não é já aquilo que foi. Contudo, e por isso mesmo, tenho de apontar a falha gravíssima deste livro que é o olvido de um jornal como aquele. Não é o esquecimento do jornal actual, é o esquecimento daquele que durante períodos não pouco importantes - como a Guerra Civil de Espanha, a II Guerra Mundial, os anos 50 e 60 - se não foi o principal jornal português, era um dos três grandes jornais portugueses. Lamento escrevê-lo assim mas a falha é tão oceânica que deita por terra toda e qualquer veleidade de desculpar o erro. Mais grave ainda quando se pretende transformar este objecto num projecto científico, de história. Desculpem, mas este livro pode ser - depois daquilo ficamos com legitimidade de por tudo em causa - "o século XX nos jornais de Lisboa" (visto que esquece tb completamente O Comércio do Porto e passa quase ao lado do JN, que não têm contudo, historicamente no século XX, a importância de O Primeiro de Janeiro) mas nem sei se será isso.
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