quarta-feira, 13 de setembro de 2006

OS TRABALHOS DE EDUARDO CINTRA TORRES

  • A cobertura deste ano dos incêndios teve, no geral, uma evolução muito positiva. A auto-regulação jornalística funcionou. Desapareceram jornalistas afogueados, chamuscados, e muitas mulheres aos gritos e em convulsões de choro (Eduardo Cintra Torres, Público, 20 de Agosto).
A presente mensagem não aparece em defesa de Eduardo Cintra Torres. Ele não precisa do meu apoio. O seu trabalho intelectual e académico é o seu principal suporte. Mas, segundo o meu juízo, é um homem frontal e polémico, escreve o que lhe parece justo - ainda que, por vezes, não se concorde com o que pensa e diz.

Este preâmbulo tem como razão o conflito gerado pelo seu texto editado no Público no passado dia 20. O assunto prende-se com os incêndios que então lavravam no país (e fora dele, lembrando-me eu dos incêndios na Galiza, até então considerada como tendo um modelo ideal de combate aos fogos da floresta, mas que se mostrou incapaz este ano). A súmula da crítica do artigo de Cintra Torres foi um documento produzido no interior da RTP com linhas de orientação para a cobertura de incêndios. Escreveu o crítico de televisão: "O texto propõe atitudes razoáveis e outras de senso comum, mas pode também servir para minimizar a importância dos incêndios". Na sua opinião, o documento acabaria por exercer censura directa sobre os noticiários quando se tratou de noticiar grandes incêndios.

No último parágrafo, o autor foi contundente. Para ele, "o governo está a recorrer a métodos ilegítimos para impedir a informação livre aos cidadãos de Portugal sobre os incêndios" e a "Direcção de Informação deve ser irradiada da RTP". O parágrafo mereceu reacção imediata das entidades visadas, que apresentaram queixa da ERC (e creio que levaram a questão a tribunal).

Julgo que tal parágrafo podia ser mais cauteloso; assim, tem um ar panfletário e de provocação desnecessária. Mas o seu texto toca em dois pontos fundamentais: o noticiar as calamidades naturais e as pressões exercidas pelo poder político sobre os media. Quanto às pressões, ou o chamado spinning (controlar através da amplificação de boas notícias e da reserva ou segredo das más notícias), ela são frequentes nos governos dos países democráticos. Os ingleses têm um espaço no parlamento chamado lobby, onde essa pressão é feita em termos legais e às claras. Contudo, o spinning é crescentemente equilibrado com o uso, por parte dos jornalistas, de outras fontes de informação que não as pertencentes ao poder político.

Quanto a calamidades naturais, caso dos incêndios, tem havido um esforço de auto-regulação nos anos mais recentes. Com a abertura a canais privados de televisão, foi-se privilegiando o escândalo, o trágico e o espectáculo, para além de uma leveza de análise (light), em detrimento do sério e do informativo. Os incêndios provocam grandes imagens de desespero humano e do poder da natureza em fúria. A queda da ponte de Entre-os-Rios em 2001 é um exemplo paradigmático. A auto-regulação (contenção dos jornalistas e seus editores) no tratamento de cataclismos (incluindo os incêndios) começou então. Ora, Eduardo Cintra Torres sabe do que escreve. A sua muito bem conseguida tese de mestrado (e consequente livro) anda em torno do acontecimento da ponte e do modo como os poderes mediático e político tratam tais ocorrências.

Embora achando que o crítico de televisão pudesse ser muito mais cauteloso nas suas afirmações, considero que houve alguma ingenuidade (e má vontade) dos poderes atingidos na sua crónica. Primeiro, o texto estaria já esquecido se ninguém reclamasse para além de carta ao director exigindo direito de resposta. Se houver reacções violentas em cadeia, elas levarão a que a ERC fique entupida com queixas - podendo colapsar em breve -, para não falar nos tribunais. Depois, nos países democráticos - e o nosso está nessa categoria -, as disputas e querelas fazem parte do jogo democrático dentro do espaço público. O apontar o dedo a uma entidade pública (e o autor criticou igualmente os canais privados), chamando a atenção para o que parece mal, é o trabalho permanente de um crítico de televisão. Ele não é um cortesão, um escritor de textos panegíricos.

Terceiro, as notícias tendem a ser cada vez mais negativas quanto à acção do governo. A recente tese de doutoramento de Estrela Serrano destaca esse sentido (apesar de estudar as campanhas políticas de candidatos à presidência da República, a autora e actual membro da ERC anota o negativismo da cobertura jornalística na página 466 da sua tese). E também o livro de Nuno Brandão, como elenco na mensagem anterior a esta.

As críticas aos governos têm, pelo menos, duas vertentes: 1) governam por sondagens para manter um eleitorado firme; 2) fazem acções mediáticas em finais de mandato (tipo inaugurações) para atrair votos. Por seu lado, os canais de televisão (e também os meios impressos, embora menos) precisam de afinar a sua identidade própria, que passa pela espectacularização das notícias, pelos soundbites (ou pequenas frases) atribuídas aos políticos e pelo peso crescente conferido às vozes populares.

Um governo que não tenha isto presente parece esquecer-se do essencial que se passa na sua relação com os media. Por um lado, o distanciamento da acção governativa - ou a arrogância de dizer que não se lê, vê ou consome os media, como se isso significasse pureza e isenção na condução governativa - não existe mais. À quase exigência de rapidez de resposta por parte do jornalista tem de corresponder, por parte do agente do poder, uma compreensão pela actividade jornalística mas balanceada pela afirmação de uma forte distinção de atitude. No caso dos incêndios, essa distinção marca-se pela discrição e pelo enfoque pedagógico. Não se pode perder de vista que a destruição da floresta (como a sua renovação) é algo que perturba todos (ou alegra). Por outro lado, se os media precisam dos políticos como fontes para as suas notícias, os políticos - e os governantes em especial - têm uma forte necessidade dos jornalistas para a passagem de informação das suas actividades para os cidadãos-eleitores. Esta simbiose de necessidades não escamoteia, contudo, as diferenças de interesses dos dois lados.

Trabalhos de Eduardo Cintra Torres (publicados recentemente ou a publicar)

- O Manto Diáfano. Crítica de publicidade, Lisboa, Bizâncio (a publicar, 2006)
- «Revalidar a Teoria dos Media Events» in Gustavo Cardoso (2006) e Rita Espanha, orgs., in Comunicação e Jornalismo na Era da Informação, Porto, Campo das Letras
- «O Telepatriotismo durante o Euro 2004», in Felisbela Lopes e Sara Pereira, coord. (2006), A TV do Futebol, Porto, Campo das Letras
- «Multidões e Audiências», in José Carlos Abrantes e Daniel Dayan, org. (2006, no prelo), Televisão: das Audiências aos Públicos, Lisboa, Livros Horizonte
- «Television in Portuguese Daily Life», in Anthony David Barker, ed., Television, Aesthetics and Reality (2006), Cambridge, Cambridge Scholars Press
- «11 de Setembro: As Quatros Fases do Evento Mediático», in Manuel Pinto, ed., Casos do Jornalismo (2006, no prelo), Porto, Campo das Letras
- «Cidade, Multidão e Anomia numa Novela de 1903» («Marques», Afonso Lopes Vieira)
- «A Greve Geral no Porto em 1903 na Imprensa e em Os Famintos de João Grave»
- «A Multidão Religiosa de Lourdes em Zola e em Huysmans»
- «Recepção em Portugal de Lourdes de Zola e da sua multidão (1894-1932)»
- «Entrevista a Peter M. Herford», Revista do CIMJ

1 comentário:

Gonçalo Pereira disse...

Aprecio imenso o Eduardo Cintra Torres, mas creio que ele se excedeu na polémica em causa e foi injusto. Afinal, o único elemento de prova apresentado foi a "despromoção" da notícia em causa no alinhamento do Telejornal da RTP1.
Ora, o mesmo jornal onde ECT escreve teve precisamente o mesmo critério: em face dos elementos disponíveis à hora do fecho, o jornal optou por colocar a notícia do incêndio no interior, sem chamada de capa.
Entre a opção editorial legítima e a manipulação governamental vai uma distância considerável. Parece-me que ECT deveria ter sido bem menos categórico na acusação que lançou…