Filha do Mar foi uma novela de Manuel Arouca para a TVI (2002), quando este canal privado de televisão estava a arrebatar a liderança de audiências à SIC. Li agora o livro, editado em 2002, e em que Ana Casaca deu uma ajuda, ao transformar o guião em livro.
A história conta-se depressa: Salvador, em viagem de veleiro chega à ilha do Faial, nos Açores, acompanhado dos amigos Guilherme e Tutas. Aí conhece Marta, jovem médica, por quem se apaixona. Quando se vai embora, com a promessa de voltar, deixa Marta grávida (mas sem aquele saber do sucedido). Ao chegar a Nova Iorque, final do périplo marítimo, conhece Sofia, que igualmente fica grávida de Salvador. No regresso, na passagem pelos Açores, Marta é informada, por Guilherme e Tutas, da morte de Salvador, uma mentira que perdura em grande parte da narrativa.
Marta é mãe de Maria. Quando o pai dela morre, vai trabalhar para Santarém, para o Centro de Saúde, em que a sua especialidade é pediatria. Rapidamente, descobre que Salvador não morrera, vive em Santarém, está casado com Sofia e é pai de Tomás, que se torna o melhor amigo de Maria na escola e a quem convida para a sua festa de anos.
A narrativa é muito rápida, pois a festa do pequeno Tomás está descrita na página 23. Depois, na página 31, Salvador procura Marta, que o evita. Já na página 59, os dois encontram-se, estando Salvador disposto a perdoar a Marta o ela ter engravidado com outro homem, que ela não contesta. O equívoco só se desfaz na página 165, quando Eduardo, irmão de Salvador, espera Marta para casar com ela. Aí Salvador tem a certeza de Maria ser sua filha.
Quase toda a história resulta da indecisão de Salvador se separar de Sofia e ir viver com Marta, a que se acrescenta uma gravidez de Sofia já no final da narrativa [fotografia do autor retirada do sítio do Jornal de Notícias]. Falta caracterizar Guilherme, veterinário e que é o mau da fita, mas, no livro não tem o castigo que costuma acontecer no final das telenovelas. Melhor: é esquecido, apesar de promessas de vingança por parte de Salvador. E caracterizar a tia Concha, que ouve Salvador, mas também Sofia e Eduardo. Ela é uma espécie de oráculo, ouvindo e aconselhando.
O livro termina com um dos três finais assinados por Manuel Arouca, aquele com quem o autor mais simpatiza. Sofia sacrifica-se: morre ao dar à luz uma filha. Antes confessara a Salvador ter tido um caso amoroso com Guilherme, anos anteriores ao casamento com ele. Marta, que tratará da bebé, casar-se-á com Salvador nos Açores.
A história é de uma grande inverosimilhança. Não se percebe porque Salvador não falou com Marta no regresso do veleiro aos Açores, não se percebe o papel de Guilherme em grande parte do livro, os filhos naturais (de Chica; do pai de Salvador e Eduardo) não tem o mesmo destino, ou seja, o reconhecimento paternal. As profissões de Salvador (arquitecto a trabalhar num projecto de museu com italianos) e Sofia (grande quadro de uma empresa financeira) teriam poucas possibilidades de êxito numa cidade fora de Lisboa. A acção decorre em apenas três sítios: as casas de Salvador e Marta e o restaurante/bar Migalhas, adequadas a uma série televisiva barata.
Os homens têm sentimentos e atitudes fracas, caso de Tutas, de que se percebe ter uma incapacidade sexual mas frouxamente explicada no livro. Já as mulheres são muito mais corajosas, quer Marta quer Sofia, independentes economicamente e capazes de ter filhos sem o apoio dos companheiros (no caso apenas Salvador). Mas as mulheres (por uma questão de honra individual) aceitam ser menosprezadas pelos homens: Marta porque não cortou com o boato de ter andado com outro homem (e talvez outros) e engravidado; Sofia porque teve um caso com Guilherme num momento de fragilidade económica. A tia Concha fora vista como insensata pela sua vida pessoal e sentimental, mas poucos dados são mostrados, o mesmo acontecendo com Chica. Assim, apesar da independência das mulheres, o universo dos vencedores é o dos homens.
O livro tem um duplo movimento: 1) rapidez de acção - gravidez, morte, deslocação para outra cidade, quase casamento de Marta com Eduardo, paixão daquela com Salvador, 2) lentidão de decisão - Salvador passa o tempo a dialogar ora em casa dele, com Sofia, dizendo que vai sair de casa, ora em casa de Marta, afirmando que quer viver com esta. Os diálogos curtos do começo do livro tornam-se mais compridos a partir do meio do texto, ocupando frequentemente duas páginas: entre Salvador e Marta, entre Salvador e Sofia, entre Eduardo e Marta, entre Sofia e Guilherme.
A história não tem qualquer densidade - social, cultural, política. Nem sequer se percepciona a hora de ocorrência dos diálogos [imagem de Dalila Carmo, que faria o papel de Marta, retirada de Fórum dos Morangos]. Os diálogos são quase exclusivos dos elementos do triângulo amoroso - Salvador, Marta, Sofia - e das personagens próximas: Guilherme e Eduardo. O mesmo não acontece com a gente do povo: o campino, irmão natural de Salvador e Eduardo, aparece indicado devido a uma queda de cavalo; de Chica, a confessora de Marta, pouco mais se sabe do que a sua história triste mas corajosa de mãe.
Todo o espaço da história é dedicado ao vaivém de Salvador, decerto para fazer derramar lágrimas nos espectadores da novela. Fazer despertar sentimentos - alegria, mágoa - é um objectivo primário num canal popular de televisão. Afinal, o importante da televisão popular é ter espectadores que comprem os produtos publicitados e não se esgotem em histórias de grande complexidade intelectual. A televisão é entretenimento, dizem os gestores de um canal popular.
A linguagem que se encontra em algumas partes do livro confirma a orientação popular da história: a força do destino, o sangue do seu sangue.
Há outra questão pertinente: por regra, há adaptação de livros a guiões cinematográficos ou televisivos. A densidade psicológica e a trama narrativa de acontecimentos no livro têm de ser traduzidos em bipolaridades como o bem e o mal, as dúvidas de estar num lado ou no outro. Mas as telenovelas mais elaboradas já são mais complexas: nem as personagens más são totalmente más nem as boas são tão puras. Isto porque a natureza humana não é simples. Além disso, as novelas passam mensagens sociais e de mudança de estilos de comportamento, das doenças a modos de sociabilidade. Filha do Mar não tem nada disto, é uma história primária, quase para adolescentes ou pessoas com competências intelectuais básicas. Talvez seja um modelo ideal para aumentar as audiências.
Manuel Arouca, que nasceu em Moçambique e concluiu Direito, foi o responsável por guiões de outras novelas como Baía das Mulheres, Jardins Proibidos e Jóia de África, este adaptado de original da Felícia Cabrita. O seu primeiro romance teve o título de Filhos da Costa do Sol (anos 80). Na novela passada na TVI, Dalila Carmo fez de Marta. A jovem actriz trabalharia no filme de Manoel Oliveira Vale Abrãao como Marina e em série de Morangos com Açúcar, ao lado de outras figuras como Benedita Pereira ou Diogo Amaral. Já Marcantónio Del Carlo foi Salvador, tendo já trabalhado em Nuvem de Ana Luísa Guimarães (1992), Coitado do Jorge de Jorge Silva Melo (1993), Sinais de Fogo de Luís Filipe Rocha (1995), Adão e Eva de Joaquim Leitão (1995), Capitães de Abril de Maria de Medeiros (2000) e Tudo Isto é Fado de Luís Galvão Telles (2004). O papel de Sofia foi desempenhado por Fernanda Serrano [ver mais informações na Wikipedia]. Destaque ainda para a música na novela da TVI: Dina cantou o tema principal, com letra de Ana Zanatti, enquanto João Pedro Pais interpretava Ninguém como Tu e José Cid tinha igualmente uma canção.
Leitura: Manuel Arouca (2002). Filha do Mar. S. João do Estoril: Sopa de Letras
1 comentário:
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