Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
sábado, 2 de agosto de 2008
O OUTONO DE VEIKO ÖUNPUU
Antes da sala de cinema abrir, aquele casal de meia idade já se havia feito notar. Ele iniciara uma chamada telefónica e passara a ela, que falou alto, muito alto. Dialogava com uma amiga sobre uma ida a Sintra e do incómodo sentido com os residentes da casa visitada. Nunca mais vou lá, dizia ela muito alto. Depois, já instalados nas cadeiras do cinema, ela parecia sussurrar, embora toda a audiência do cinema conseguisse ouvir: trata-se de um filme sobre a solidão. Deve ter repetido a expressão umas três vezes. Até ao genérico do filme, ela falou. Fiquei sem saber se um deles tinha um grau de surdez elevado. Já no final da exibição, comentava ela: não sei se o filme é russo. E repetiu. Cá fora, ele abordou-me e fez-me essa pergunta. Ao que respondi laconicamente: é da Estónia. O homem pareceu-me ter dito qualquer coisa como: bem me parecia isso.
Sügisball - Baile de Outono, de Veiko Öunpuu, é como que um filme experimental: na articulação das várias histórias, nas cores, num tipo de desfocagem das imagens que proporciona uma combinação de formas imprecisas. O ponto de partida é um bairro urbano periférico que dá para um descampado triste. Poucas vezes nos é mostrado o fluxo dos indivíduos mas mais o interior das casas e da vida isolada ou solitária dos seus integrantes. Histórias de casais que se desfazem lentamente, com pequenas traições ou apagamento de laços entre eles.
Depois de ver todo o filme, ficámos com uma ideia precisa do que o realizador quis mostrar: o barbeiro solteiro e de meia idade que olhava uma menina e acabou por lhe dar o boneco de corda, a empregada na fábrica que cuidava com desvelo essa mesma menina enquanto vivia uma existência amarga e em que os homens a procuravam aliciar, o porteiro que teria mais interesse em comprar contentores do lixo para criar uma pequena actividade industrial do que integrar as suas conquistas femininas. E, depois, os intelectuais, os mais idiotas do filme: um forrara a casa com livros mas o abandono da mulher transtornou a vida e os livros eram uma decoração inútil; outro achava um dever político-estético viver no bairro social, mesmo quando os outros se riam dessa sua atitude.
Cada personagem está à beira do abismo, e parece haver sempre alguém a ajudar. O bêbado, o polícia (que era intelectual, mas esta condição não era materialmente compensadora) e o patrão do porteiro são outras personagens que dão brilho a um pano de fundo sempre frio, distante, solitário.
Uma das conquistas femininas do porteiro fala-lhe de Pessoa - esse mesmo, Fernando Pessoa - como se houvesse uma ligação entre os extremos do continente europeu, entre Portugal e a Estónia. Até há pouco a Estónia fazia parte da União Soviética mas, pelo filme, vê-se que pouco havia de comum, como outrora entre a Finlândia e a Rússia. Pele muito branca, cabelos entre o louro e o ruivo e uma língua cuja sonoridade me pareceu próximo do finlandês, mas não do sueco e muito menos do russo, esta paisagem humana e cultural agia num fundo soviético, o dos bairros feitos ortogonalmente, caixas iguais como se os indivíduos fossem todos iguais, sem infra-estruturas de apoio, mas revelando, contudo, uma materialização capitalista em contraste com a anterior penúria socialista.
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