quarta-feira, 8 de abril de 2009

BIOGRAFIAS


Um dos programas que me impus foi ler biografias de homens do centro da Europa que marcaram o século XX em termos culturais, políticos e sociológicos. Das leituras, não procurei o destaque que deram às indústrias culturais mas ao modo como viram a Europa e contribuiram para a sua transformação ao longo das décadas desse século nas artes e nas indústrias ligadas à cultura. Escolhi três homens muito cosmopolitas, de diferenciamentos políticos entre eles. As suas biografias são notáveis - claro que os biografados fazem sempre uma revisão da história que os colocam em posição confortável, central, dos acontecimentos que narram e de que são actores. Por coincidência, os três biografados são judeus, que assistiram com horror à ascensão e aumento de poder do nazismo.

Dois tiveram um percurso social, profissional e intelectual em diversos países - e de que já aqui fiz destaque. Eles foram Hobsbawn e Canetti (igualmente fiz breves referências à moda e ao jazz em Hobsbawn). Ambos escreveram em alemão, mas, além da Alemanha, passaram por países como Inglaterra e Áustria, o que os levou a escrever em inglês (ou mesmo em francês). O terceiro biografado é Raymond Aron, com a particularidade de ser comparado com o seu "pequeno camarada" Jean-Paul Sartre. Francês, ele também passou pela Alemanha, onde ensinou e escreveu, e pela Inglaterra, onde esteve aquando do período da Resistência francesa à ocupação alemã.


De entre os temas que escreve, destaco a percepção que tem da Segunda Guerra Mundial, o caminhar ao lado do general De Gaulle e o lento afastamento de ambos, a combinação das actividades de jornalista, professor universitário e político, o envolvimento no jornal de direita Le Figaro, a corrosão da amizade com Sartre, o igual afastamento face a Paul Nizan, a relação com André Malraux, a guerra na Argélia e a sua defesa da independência daquele antigo território ultramarino da França, as posições francesas e as suas sobre a NATO e a União Europeia, a relação da França com o país do meio (Alemanha), a amizade com Henry Kissinger, a sua posição face ao Maio de 1968, as muitas conferências e livros, a sua oposição ao marxismo (apesar de escrever sobre Marx), a ideia da decadência do ocidente (pelo menos da Europa).

Se especulei que Hobsbawn e Canetti poderiam ter-se encontrado em Viena, creio que Hobsbawn e Aron nunca se cruzaram. Pelo menos politicamente: Hobsbawn foi comunista até quase ao final da sua vida, mas passou por um longo e febril afastamento dessa opção; Aron sempre foi da direita francesa. Ou, então, passaram um pelo outro em Londres, nos finais da década de 1930 ou primeiros anos da década seguinte. Ambos estiveram muito junto dos poderes, Hobsbawn mais do universitário, Aron mais do político e do universitário. É evidente a ligação de Aron ao poder político, ele gostaria de ter sido o príncipe que aconselha o monarca: "Muitas vezes me encontrei com Giscard d'Estaign antes da eleição de 1974" (p. 485), "Alertar os chefes da maioria e convencê-los de que podiam e deviam impedir um proprietário, fortemente endividado, de provocar a saída de alguns grandes nomes que adornavam o Figaro" (p.a 473), "O Presidente da República [d'Estaign] desaconselhou-me, se bem me recordo, de deixar o Figaro" (p. 471), "Do Eliseu e de Matignon vinha uma discreta pressão a favor do magnata que assentara a sua fortuna no Autojournal" (p. 465).

Em Raymond Aron noto uma nostalgia ou mágoa no final da sua vida, em especial quando fala da decadência da Europa (também verifiquei esse sentimento nas outras biografias). Aron publicou as suas memórias em 1983, mas, ao lerem-se algumas páginas, há uma grande actualidade: a crise financeira, o défice da balança de pagamentos americana, o envelhecimento da população, a alteração dos sistemas sociais (antes do capitalismo, as aldeias da China eram quase autosuficientes, controladas à distância pelo imperador, escreve ele algures).

Falta-me ler o segundo volume das memórias de Canetti, ainda não publicado pela editora. O mais político (o que mostra melhor como se faz a política) é o livro de Aron, o livro mais bem escrito é o de Hobsbawn, o que conta melhor a realidade intelectual é o de Canetti. Se a Europa acelerou a sua decadência no século XX, os mesmos biografados assinalam os momentos mais emocionantes do nosso velho Continente: a união económica, apesar das variadas línguas e posições estratégicas, a cultura humanista, as cidades cheias de história, a sabedoria da sua filosofia e o encanto da sua música, as vanguardas estéticas. O cinema começou na Europa, os jornais são uma invenção europeia, a música mais importante nasceu na Europa, a Europa chegou ao resto do mundo (embora com posições erradas de colonialismo e imperialismo).

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