1. Os media (e a arte) dão conta de como a vida (social, cultural, política, económica, religiosa) evoluiu ao longo dos séculos, em especial desde finais do século XIX. A pintura da galeria Tretyakov (Moscovo) mostra o povo russo a trabalhar a terra, a indústria, os labores, as canseiras, a vida dura. Por exemplo, a luta contra a neve, o transporte de bens e mercadorias como a água executado apenas pela força dos homens. Aí, os pintores usavam cores vivas, mesmo ingénuas. Já a televisão que se vê nos canais comerciais de Moscovo apresenta talk-shows, com piadas abundantes (os frequentadores do café riam abundantemente), imitando actores e contando histórias. Nesses programas, vê-se gente jovem e feliz à volta de uma mesa - já não numa atitude de trabalho, mas de lazer e de prazer.
2. A guia do museu zoológico referiu-se a uma espécie de veados da zona norte e fria da Rússia: as fêmeas tinham de lutar muito para obter o alimento dos musgos, num permanente trabalho de sobrevivência. Impressionou-me muito ver os animais embalsamados, de bisontes a leões e de tigres a aves (embalsamadas, as aves mais bonitas, de longas penas, são as mais estúpidas, dada a fragilidade da sua constituição física no combate com outros animais). No museu, a vida acaba ali - o homem quis preservar as espécies como se fosse um desenho a três dimensões, um volume de formas e cores estático.
3. A época em que o museu zoológico foi criado (finais do século XIX) marcou uma época complexa na história da Rússia. Os homens lutavam contra a natureza, que, pela adversidade, obriga a uma selecção. A televisão de hoje dá a imagem de tudo já conquistado, de uma certa lassidão até. Os temas dos quadros da galeria Tretyakov seriam pessimistas - mas também há quadros que retratam czares e príncipes ao lado de cenas de grande violência na história da Rússia. A televisão, que apresenta as desgraças do mundo na informação, ocupa todo o resto do tempo a propagandear a beleza, a fortuna e o optimismo. Os marginais, os excluídos e os miseráveis, que surgiam na pintura, são esquecidos na televisão.
4. No congresso de jornalismo de Moscovo em Outubro passado uma comunicação tratava do revisionismo do revisionismo. A ideia central é que o regime comunista e as suas obsessões vinham da alma russa, do tempo dos czares. Isto é, as perseguições, a falta de liberdade de imprensa e o regime securitário têm raízes na tradição russa. Daí, os tiques de autoritarismo do actual regime, apesar da ocidentalização de Moscovo, com lojas de marcas internacionais e modos de vestir e consumir que não distinguimos de outras cidades europeias ocidentais.
O culto religioso demorou mais de uma hora, com os crentes em pé (ausência total de cadeiras). Na área de culto, há três portas, sendo a do meio (a régia) aquela onde os sacerdotes ortodoxos circulam entre o santuário, atrás do iconostácio, e a assembleia. Os sacerdotes rezam de costas voltadas para os crentes e estes benzem-se frequentemente. As mulheres usam lenço mas não estão separadas dos homens, ao contrário do que vi na igreja ortodoxa grega. Os ícones preenchem todo o espaço das paredes e dos tectos. Em algumas igrejas, no seu exterior, vê-se o tijolo da estrutura do edifício. Se, nas igrejas de culto, os crentes são russos, nas igrejas do Kremlin há muitos visitantes estrangeiros. A entrada para a praça das catedrais é de 350 rublos (700 para visitar também os museus). Compra-se o bilhete num sítio, guardam-se objectos como mochilas noutro e entra-se num terceiro local, com detecção de metais como se fosse a entrada de uma fronteira no aeroporto.
6. As empregadas da galeria Tretyakov têm todas mais de 50 anos, falam apenas o russo e são tipo funcionárias de Estado, mal encaradas a cumprir uma obrigação, possivelmente uma herança do regime soviético (em Portugal, ainda há surpresas semelhantes). Apesar de antiquada, a informação disponível nos quadros contempla o título em inglês.
7. Ver uma peça em russo sem entender a língua, durante três horas, foi das experiências mais ricas da minha vida. Primeira dificuldade: a empregada não me quis vender o bilhete por ausência total de comunicação. Valeu-me o espectador que se me seguia na fila; embora falasse apenas russo, mostrou uma nota de 100 rublos (o preço médio de entrada, bem barato), e a empregada vendeu-me um bilhete desse valor. Segunda dificuldade: para encontrar o lugar, já na galeria, fui recebendo sinaléctica sucessiva, o mesmo acontecendo para os binóculos que aluguei para ver melhor os intérpretes. Terceira dificuldade: apesar de entender o enredo da peça, não ri quando os outros espectadores riam. Mas percebi como um analfabeto compreende um filme apenas pelas imagens (eu sou analfabeto a ler cirílico, ficando sem perceber o título da peça e o autor).
8. O taxista que me levou do hotel para o aeroporto (cinquenta quilómetros) usou as cinco faixas de rodagem da auto-estrada mais a berma da estrada, chegando a atingir nesta os cem quilómetros à hora. Eu julgava estar dentro de um videojogo, com a posição do automóvel em constante mudança de fila de carros. Eram duas da tarde, chovia muito e havia algum nevoeiro, com pouca luz diurna e um tráfego intenso, onde bons automóveis emparelhavam com camiões antigos. Pensava: se houver um acidente, perco o avião. Mas não pensei que me podia magoar. Ao lado da auto-estrada vislumbrava uma floresta e, mais perto do aeroporto, uma povoação com casas de madeira e telhado de inclinação acentuada preparado para receber a neve. Já no aeroporto passei por um aparelho de raios-X, colocando os pés em marcas indicadas e levantando os braços (será o tipo de aparelho usado já em Manchester e noutras cidades inglesas noticiado há semanas atrás?). Dentro do aeroporto, as lojas não vendiam os objectos em rublos mas em euros e dólares, embora aceitassem o pagamento em moeda russa.
9. O centro comercial GUM, mesmo em frente ao túmulo de Lenine, o que é uma enorme ironia, repleto de lojas de marcas ocidentais, deve ser um insucesso. Quase ao meio-dia de uma segunda-feira, ele estava deserto, com as empregadas a olharem para fora das lojas.
10. Quando passeava na Arbatskaya, vi o que me pareceu uma grande catedral (como nos países do ocidente da Europa). Afinal, era um edifício do Partido Comunista, cheio de símbolos (foices e martelos) esculpidos na pedra e datado de 1951. Pensei como o regime de Moscovo dessa época buscava formas gigantes e simbolizando o poder como as igrejas cristãs o fizeram durante séculos (o pináculo mais alto, a maior visibilidade do sítio mais longínquo) ou as torres de Nova Iorque ou os edifícios do Qatar e de outros países exportadores de petróleo.
1 comentário:
Um belo e sugestivo relato.Conhecendo um pouco os locais de que fala, é com muita nostalgia que o acompanho. Obrigada.
Graça
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