segunda-feira, 26 de março de 2012

A rádio segundo António Cagica Rapaz

O enérgico e sorridente Eduardo aplicava duas argoladas na porta, invariável e ruidosamente, às sete da manhã. A minha mãe ficava com o leite e, depois de deixar o fervedor na cozinha, acendia a telefonia. Assim começava o dia com o “Talismã”, o seu programa da manhã, produzido pelo Gilberto Cotta. Ao microfone, Armando Marques Ferreira, António Miguel e Dora Maria. Das sete às oito e meia, com segunda sessão das dez ao meio dia. Pelo meio ficava a “Onda do Optimismo”, com o Jorge Alves. Tudo no Rádio Clube Português. Às sete e meia, ia para o ar um folhetim mais assustador do que as argoladas do Eduardo, a cargo da Manuela Reis que interpretava todos os papéis, fazia todas as vozes, homem, mulher e criança, narrava e dava corpo sonoro às personagens. Eram histórias aterradoras que eu ouvia de longe, do fundo da minha cama... Mas os primeiros ecos da telefonia são anteriores, situam-se na taberna da minha avó, com os “Companheiros da Alegria”, o Zèquinha e a Lélé, o Vasco Santana, o Igrejas Caeiro, a Elvira Velez. E os fados! Os fados, na rua dos Pescadores, reconfortavam, ajudavam a esperar o fim do vendaval, a aceitar a fatalidade do destino, e iluminavam as noites quentes de Verão, sardinha assada e fogareiro à porta. Até o mar se calava para ouvir a Amália...

Quando mudámos para a rua da Fé, a telefonia passou a ser a do Chico da Cooperativa, com os relatos de futebol e, sobretudo, a magia das transmissões de hóquei em patins, os torneios de Montreux, na longínqua Suíça. Era a vibração apaixonante do Artur Agostinho e do Amadeu José de Freitas, os golos de Portugal contra a Espanha, tanta emoção e paixão. A nossa imaginação fervia, tínhamos de dar um rosto, um corpo àquelas vozes cujos donos ninguém conhecia. Era o fascinante sortilégio da Rádio... Já na rua Monteiro, o Manel Estêvão convenceu o meu pai a comprar uma telefonia Philips, a prestações, com letras assinadas por mim, com a caligrafia insegura dos oito anos e que poucas melhoras regista desde então.

No quadro das estações, da esquerda para a direita, lá estavam a Rádio Voz de Lisboa, a Rádio Graça, os Emissores Associados de Lisboa, o Clube Radiofónico de Portugal, a Rádio Renascença, o Rádio Clube Português e as duas Emissoras, a 2 e a 1 que transmitia com Lisboa, Porto, Coimbra, Faro, Guarda, na banda dos 47 metros. Nos emissores pequeninos de Lisboa, havia, ao sábado de manhã, para os miúdos, o “Comboio das Seis e Meia", do José Castelo, que veio muitos anos para Sesimbra e era amigo do meu pai. Certa vez, num concurso de desenho, ganhei duas grandes caixas de chocolates Regina graças ao talento da minha tia Lucinda e ao descaramento com que assinei o bilhete postal, com uma letra ainda mais incerta do que era habitual. A fraude já prescreveu, espero bem...

Na Emissora, gostava de ouvir o “Jornal Sonoro”, os relatos de futebol e, sobretudo, o teatro radiofónico que ia para o ar às nove e meia da noite, repetindo no dia seguinte à uma e meia da tarde, mal acabavam as aventuras do Patilhas e do Ventoinha, parodiantes do Rádio Clube Português. As vozes mágicas do teatro pertenciam a Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Rogério Paulo, Raúl de Carvalho, Rui de Carvalho, Canto e Castro e outros. Samuel Diniz ensaiava. Na mesma Emissora, ao sábado, às sete da tarde, depois do banho, era o programa infantil da Maria Madalena Patacho, com realização do Castela Esteves, as Aventuras do Zé Caracol.

Mas o Rádio Clube Português era a estação que mais ouvíamos, o “Talismã”, os “Parodiantes de Lisboa”, o Lança Moreira, o senhor Messias, as cavernosas “Lendas da Nossa Terra”, do Gentil Marques, os sublimes diálogos do sempre imitável mas nunca igualável Olavo d’Eça Leal. A mana Maria Helena tinha a mais bonita voz da nossa Rádio, a meu gosto. À boca da noite, enquanto esperava o meu pai, ouvia o “Jornal da APA”, apresentado pelo Luís Filipe Costa e pela Tany Belo, das sete e meia às oito e dez. A seguir vinha o “Apontamento do Dia”, por Américo Leite Rosa, o mesmo do apicerum, do segredo da abelha. Os “Apontamentos” eram olhares poéticos, atentos e curiosos, sobre o quotidiano, sobre as pessoas e as coisas. Se o meu pai demorava, ainda ouvia, na Renascença, os “Cinco Minutos de Jazz”, do José Duarte, com que se atingia as nove da noite. Era o limite da minha tranquilidade vacilante, a última carreira tinha chegado há muito. A partir daí ficava mais inquieto e preocupado...

Ao sábado, às oito e meia, havia a “Onda Desportiva”, apresentada por um tal Henrique Mendes que ninguém sabia se era alto ou baixo, gordo ou magro. Alto e magro, muito magro, era um certo Alves dos Santos, mas isso só fiquei a saber muitos anos depois. Naquela altura, ele fazia, com o Fernando Pires, as “Jogadas de Antecipação” com que encerrava o programa. Ao domingo era hábito almoçarmos bacalhau com grão enquanto ouvíamos “A Vida é Assim”, de José de Oliveira Cosme. Era um programa delicioso, sem pretensões, muito caloroso e agradável, com diálogos interpretados pelo autor e pela Mary, o João e a Luísa de uma ficção que integrava os anúncios na conversa do casal. E assim apareciam, com suave naturalidade, as camisas da Camisaria Moderna, as tais que não faziam pregas no peito nem rugas no colarinho, o cafezinho da Pérola do Rossio, no Rossio 105, os chás milagrosos da antiga ervanária do largo da Anunciada, os petiscos da charcutaria Suíça e, o melhor de tudo, os candeeiros bem bonitos, modernos, originais, compre-os na Rádio Vitória, não se preocupe mais. Porque na Rádio Vitória, embaixada do bom gosto, quem lá vai é bem servido e sai sempre bem disposto. Lá na rua da Vitória, 46-48, satisfaz-se plenamente o cliente mais afoito.

Na Rádio Voz de Lisboa, havia uma locutora com uma voz muito doce que dizia, com frequência e muita, muita meiguice “Esta é a Voz de Lisboa”. Um dia, o Vítor Marques, na brincadeira, imitou-as, anunciando com requebros ternurentos “Esta é a Rádio Renascença”. Os senhores padres é que não gostaram e suspenderam-no por quinze dias... A tal Voz de Lisboa apresentava um programa muito popular, com discos oferecidos aos doentinhos dos hospitais, enfermaria oito, cama nove, a Maria Amélia Canossa a dizer que “anda o vira na minha rua, já me encheram a rua toda, oiço harmónios e cavaquinhos, cabeças à roda”. Enquanto o Artur Ribeiro convidada “a cachopa do Minho que Deus abençoa, deixa o teu cantinho, vem até Lisboa mostrar como baila a tua chinela, ver o lisboeta andar atrás dela”. Mas eu gostava era de ouvir o Max a contar a história da Maria da Luz. “Na pequena capelinha da aldeia velha e branquinha, dei à Maria da Luz um cruz de pôr ao peito e o juramento foi feito por nós dois sobre essa cruz”.

[Conto de António Cagica Rapaz, com pequenas adaptações. António Cagica Rapaz foi escritor, nascido em Sesimbra em 1944 e falecido em 2009]

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