quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Bácoro, do Teatro Palmilha Dentada

Fiquei rendido ao grupo do Teatro Palmilha Dentada. A representação de Bácoro (textos de Ricardo Alves e Sandra Neves) despertou em mim uma série de memórias culturais, dos gregos e latinos clássicos a Alice no País das Maravilhas, a Pasolini.


O primeiro quadro é dos mais deliciosos – o diálogo do dono e empresário do circo com o porco amestrado, em que ele fala dos erros e da aprendizagem e o porco responde com grunhidos quase humanos (hic, ric, mmm). Um dos atores manipula os gestos do animal, lembrando o teatro japonês das marionetas, embora sem o rigor das cenas setecentistas ou oitocentistas deste teatro. Aqui, ao contrário, a cena segue com muita liberdade de ação. Há uma certa manifestação filosófica num cenário colorido e agradável.

Outro quadro dos mais bem conseguidos e mais extensos retrata a vida de um bairro popular e histórico de uma cidade. Poderíamos pensar no Barredo (Porto). Nele há uma cenografia construtivista, maquínica, modernista, até futurista, a lembrar os automóveis, os edifícios e a poesia de Marinetti – pelo menos, era isso que me parecia ainda o espetáculo não começara e eu vira as construções na penumbra do palco e na escultura mecânica (em movimento) no foyer do teatro. Quando a luz iluminou o palco e se chegou a esse quadro, compreendi que a minha perceção inicial estava ligeiramente equivocada. Afinal, eram casas do burgo antigo de ruas estreitas e prédios esguios, onde habitam mulheres e homens ainda jovens mas já envelhecidos e que discutem as questões do dia a dia, se zangam mas se despedem até ao dia seguinte com um beijinho oral enviado de janela a janela ou entre varandas.

Aqui os três atores (Ivo Bastos, Nuno Preto e Rui Oliveira) desdobram-se: são duas mulheres, com filhos (Pedro e Alice), marionetas que manipulam os movimentos e dão voz, no sentido do ventríloquo. As mulheres discutem o espaço disponível do fio do estendal da roupa, as crianças-marionetas os jogos que convidam o outro. O rapaz quer jogar aos índios e cowboys, a menina ao coelhinho, que vai buscar a Lewis Carroll. Tudo decorre a nível do andar ou das águas furtadas em que vivem e um insulto é “ir lá abaixo”, como se a rua fosse um lugar de perdas. As falas e a manipulação dos bonecos são momentos bem conseguidos do grupo. O terceiro elemento, um homem, assume de novo uma postura filosófica, mesmo que não se entenda o que pretende alcançar. Ele parece ser a personagem das parábolas, como a repetição de pedidos de desculpa significar a possibilidade de um novo erro, numa repetição de tarefas à Sísifo. Ou da pesca, a lembrar o ditado chinês de ensinar a pescar.

Feliz a caracterização dos atores (figurinos de Inês Mariana Moitas), com grandes protuberâncias em zonas do corpo, que dão ao mesmo tempo um ar próximo da realidade e um aspeto risível, que a assistência segue de bom grado. Uma das protuberâncias da mulher parece uma boia de salvação, a da outra lembra fertilidade e riqueza visual. Do mesmo modo que a manipulação da marioneta porco também a manipulação das crianças mostra o Teatro Palmilha Dentada um grupo muito maduro, eliminando qualquer elemento de infantilidade, como eu escrevi aqui há muitos anos, a propósito da colaboração na Antena 1 (e que atribuo agora ao pobre Portugalex). Os quadros das casas do burgo velho e do porco em digressão (porco a andar de bicicleta e não a andar numa bicicleta, pois esta segunda aceção significa autonomia do animal para conduzir ele próprio, o que não coincide com a verdade) juntam-se para dar um quadro final, a da tentativa de apanhar o porco e cozinhá-lo. A vizinhança, pela primeira vez, está de pleno acordo em dar uma sequência final. Afinal, como Pasolini ensinou, os porcos são para comer e os corpos para amar. Mas, apesar dessa concordância, cada elemento da vizinhança quer dar um toque à mesa de preparação do banquete – talheres, pratos, um candeeiro, uma balança, uma pequena estátua – como se a mesa expressasse simbolicamente a riqueza de cada membro do bairro.

O catálogo que acompanha o espetáculo, de grande qualidade gráfica, em especial as imagens que mostram figuras e poses centrais da peça, explica a razão das máquinas e das marionetas e do porco (de vime e esponja) em especial, a partir de desenhos e esculturas saídas das ideias e das mãos de Sandra Neves, vindas de um ateliê na Fábrica (rua da Alegria, onde vários grupos teatrais – indo de artistas circenses a artesão e atores – partilham espaço e até ideias).

A sala do teatro Carlos Alberto (Porto) estava cheia de um público jovem e generoso na atribuição de palmas no final do espetáculo. A sala é confortável, a lembrar a sala Vermelha do Teatro Aberto (Lisboa) e a sala dos Artistas Unidos (esta menos confortável em termos de cadeiras mas a de maior visibilidade em todas as filas). Naquela sala do Porto há com regularidade expressões culturais de mais vanguarda que o teatro S. João, espaço mais difícil dada o espaço entre palco e plateia (e com menos visibilidade nas filas detrás).


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