sexta-feira, 27 de agosto de 2004

EXCEPÇÃO CULTURAL

Em 25 e 27 de Abril último, escrevi neste blogue sobre excepção cultural, a propósito de posições assumidas pela nova ministra espanhola da cultura. Escrevi, no segundo destes dias, que "a aplicação da excepção cultural na União Europeia leva em conta a natureza sensível das características das suas indústrias culturais. Há a recusa de uma liberalização [ou abertura total dos mercados] dos serviços audiovisuais (cinema, rádio, televisão) ou dos serviços relacionados com bibliotecas, arquivos e museus. Isto permite à União Europeia, e em especial num momento em que se alarga a mais dez países, desenvolver políticas públicas de apoio ao sector audiovisual, tais como quotas na televisão e na rádio, ajuda financeira (para programas de produção e distribuição como o MEDIA), acordos regionais de co-produção (como o Eurimages) e a Directiva «Televisão sem Fronteiras». O artigo relacionado com o cinema permite quotas de ecrãs para exibição de filmes nacionais (o que nem sempre acontece no nosso país)".

Volto ao assunto por causa do artigo de Mario Vargas Llosa, sobre o mesmo assunto, e publicado no DNA (Diário de Notícias), faz hoje precisamente uma semana. Ele começa por relevar os dois argumentos a favor da excepção cultural: a) "que os bens e produtos culturais são distintos dos outros bens e produtos industriais e comerciais [não podendo] ser entregues, como estes últimos, às forças do mercado - à lei da oferta e da procura"; b) "os produtos culturais devem ser objecto de um cuidado especial por parte do Estado porque deles depende, de forma primordial, a identidade de um povo, ou seja, a sua alma, o seu espírito, aquilo que singulariza entre os outros e constitui o denominador comum entre os seus cidadãos".

Posições contra a excepção cultural

Passados os argumentos pró-excepção, acentua as posições contra-excepção, que constituem o resto do texto. Para Vargas Llosa, a excepção significa estarmos a "afirmar que a cultura e a liberdade são incompatíveis e que a única maneira de garantir a um país uma vida cultural rica, autêntica e da qual todos os cidadãos participem, é ressuscitando o despotismo iluminado e praticando a mais letal das doutrinas para a liberdade de um povo: o nacionalismo cultural". Ou seja, e como escreve mais à frente, a excepção cultural desemboca "apenas em que uns quantos artistas recebam os subsídios que pedem e, com o pretexto de proteger os bens culturais, os burocratas perpretem mais dissipações que as consabidas".

Sabe-se que Llosa, cidadão e escritor peruano, mas que também tem a nacionalidade espanhola e se doutorou em filosofia e letras pela Universidade Complutense de Madrid, tem como objectivo principal opor-se à posição do actual governo de Madrid, pró-excepção cultural (ver minha mensagem de 27 de Abril passado). O escritor acha que "querer acabar com o mercado para os bens culturais porque o público não sabe escolher é confundir o efeito com a causa, liquidar o mensageiro porque traz notícias que nos desgostam" e defende o "debate e mestiçagem com as outras culturas do mundo". Conclui, dizendo que "a ideia de «proteger» a cultura é por si perigosa. As culturas defendem-se sozinhas, não precisam dos funcionários para isso, por mais cultos e bem intencionados que estes sejam".

amelie.JPGSem deixar de vista a posição de Llosa, vale a pena salientar que, por exemplo, no cinema, a produção e distribuição americanas na Europa são tão poderosas que fica pouco espaço para as obras europeias. Nos últimos anos, apenas O fabuloso destino de Amélie, filme francês, conseguiu um enorme êxito nos Estados Unidos. E não se insurgia João Mário Grilo, ontem na Visão, ao escrever: "o ICAM parece achar possível fazerem-se, em Portugal, numa situação de mercado aberto, filmes concorrenciais com o cinema americano (que custa mil vezes mais)"?

Um país pequeno como Portugal não tem de criar mecanismos de apoio à produção, distribuição e exibição - mais a publicitação e criação de eventos? Ou deve deixar funcionar o mercado? E os gostos não se podem educar? Ou acaba-se com o ministério da Cultura?

Adenda publicada ao fim da manhã - ou a arte dormideira

Quando escrevi e publiquei esta mensagem ainda não tinha lido o texto de Mario Vargas Llosa de hoje, no DNA. O curioso é que ele voltou ao tema, com o mesmo vigor e inteligência do anterior. Até parece que me ouviu - embora isso não seja verdade, porque: 1º) não me conhece, 2º) quando escrevi, o texto dele já estava impresso. Mas podia dizer, como alguém me escrevia há algum tempo, "sincronicidades vivem acontecendo connosco".

Ora, o que diz hoje Llosa? Que "é preferível que o Estado, se tiver o propósito de promover a cultura, transfira o principal dessa tarefa para a sociedade civil, mediante políticas - como os incentivos fiscais - que estimulam o mecenato e as iniciativas culturais dos particulares. Deste modo, descentraliza-se e diversifica-se a ajuda, reduzem-se os riscos do favoritismo e de discriminação e atenua-se o efeito adormecedor para a cultura que deriva de um monopólio estatal do patrocínio cultural". Dá o exemplo dos países anglo-saxónicos, com o mecenato e as fundações. Ao lembrar o que fazia Buñuel, que "pediu ajuda económica às condessas mas não aos governos", surge com a expressão arte dormideira (retirada do surrealista peruano César Moro, nos anos de 1940): "Como a dormideira que produz o ópio e tem umas folhas abrasadoras e trepadoras, o subsídio oficial debilita e esgota por desfalecimento interno a acção criadora".

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