domingo, 16 de junho de 2019

Bernardino Pires (14)

Para conhecer a biografia do fotógrafo Bernardino Pires (1904-1977) torna-se imprescindível acompanhar o seu lado profissional de ilustrador de cartazes, prospetos e outros meios de publicidade. Cada trabalho era executado com muito pormenor, nomeadamente o desenho de insetos, feito à lupa a partir do natural. As letras, números e "letterings" eram desenhados à mão, inventando novos estilos de acordo com a época. Os trabalhos passavam pelas casas gráficas que faziam as gravuras, para composição final elaborada segundo uma maqueta prévia. O filho Daniel Pires, quando pequeno, fazia os "recados" de levar e trazer gravuras e provas que o pai depois trabalhava (memória de Daniel Pires).
Deixo aqui três exemplos de trabalhos, um em fase de desenvolvimento e outro pronto e dedicado a uma marca. A última imagem mostra uma pequena parcela do seu portefólio profissional. Fixo-me na primeira, onde Bernardino Pires propõe os "letterings" e a imagem da larva a saltar ávida para destruir o fruto e a colheita no seu todo (figura de estilo sinédoque). O Nevisox era um novo inseticida pronto a destruir escaravelhos, bichos da fruta e traças da uva. A empresa que comercializava o produto ficava na rua do Bonjardim (Porto) e tinha caixa postal a facilitar os contactos. Leio agora a terceira imagem, onde se vê a vasta procura do seu trabalho, de hotéis a seguradoras e fábricas de lâmpadas.
[espólio pertencente a Daniel Pires]




sábado, 15 de junho de 2019

Bernardino Pires (13)



Esta é a última fotografia da obra de Bernardino Pires que comento - pelo menos no formato de acesso livre na internet. Direitos de propriedade intelectual antes da necessária publicação de livro sobre o fotógrafo impedem a sua continuidade. Agradeço aos seus herdeiros, em especial a Daniel Pires, a gentileza de acesso para ter publicado e comentado diversas imagens do artista. Do que já conheço dele, há um precioso espólio temático - festas dos santos populares, trabalho fluvial e agrícola, vida e modernidade urbana, microcosmos social do Barredo (Porto) e trabalho artesanal e comercial, numa perspetiva de estética maioritariamente neorrealista. Bernardino Pires retratou bem o Porto, cidade onde viveu e trabalhou, e participou em muitos concursos nacionais e internacionais de fotografia (Espanha e Brasil).
A imagem não é das mais significativas do seu trabalho. Mas envolve dois meios de comunicação: comboio e telefone. Recupero, de novo, James W. Carey ("Communication as Culture. Essays on Media and Society", 1989) e a sua dupla definição de comunicação: transmissão, ritual. A segunda, a mais antiga, olha a comunicação segundo a perspetiva da religião e da cultura - comunhão, comunidade, partilha. Da segunda, e à qual dedica muita atenção, ele define comunicação como envio de mensagens e transporte. Pelo menos desde o baixo Egito, escreve Carey, que mensagem e transporte constituíam a mesma coisa. O aumento de velocidade dos transportes ao longo do tempo fez com que mercadorias e documentos chegassem ao destino mais depressa. Repito: transporte e comunicação tinham uma ligação inseparável. Mesmo com o jornal, o processo era centralizado em termos da produção e era transportado e distribuído. A invenção do telégrafo acabou com a identidade da ligação transporte-comunicação. O telefone, a rádio, a televisão e a internet eliminaram de vez essa ligação.
Na fotografia, o comboio movido a uma máquina de vapor parece dirigir-se à estação de S. Bento, analisando a posição da encosta à esquerda da fotografia. Entre aquela estação e a de Campanhã há alguns túneis e duas linhas, uma delas destinada à circulação para sul do país. Ao comboio, o fotógrafo incluiu um poste telefónico; por isso, evoquei Carey. Naquele comboio, viajavam pessoas e mercadorias; no telefone, mensagens de pessoas. O comboio é um meio físico de transporte, o telefone é um meio de transmissão.
(coleção de Bernardino Pires, espólio de Daniel Pires)



quarta-feira, 12 de junho de 2019

Bernardino Pires (12)



Salina e traçado telefónico aéreo, Aveiro (fotografia de Bernardino Pires, espólio de Daniel Pires, originalmente publicado em https://www.facebook.com/groups/1628946184001729/).
A fotografia poderia ser abstrata, pois a geometria é o seu elemento principal. Mas, analisando melhor, é o trabalho humano que preside à sua organização. O sal não se edifica em modo de cone (quase regular a partir da forma de pirâmide). A sua alvura representa o lado da natureza.
Os postes telefónicos remetem para um ponto de fuga, com interseção de fios e da linha de terra. O trabalho industrial (madeira dos postes, metais dos fios, cerâmica dos isoladores) integra-se na natureza. Aliás, os isoladores parecem pássaros. Se fossem alvo-pretos lembrariam a andorinha que andou a passaretar aqui há pouco perto da janela.
O trabalho - a salina e os postes telefónicos - estão prontos. Parece que os dois elementos existem desde o começo dos tempos. A minha hipótese é que a natureza é geométrica, mesmo quando há caos. As formas matemáticas nasceram, julgo eu, da natureza. Melhor: da observação da natureza. O fotógrafo, munido da sua máquina, agarrou o pedaço da natureza e mostrou-o.
O sal é alimento, conservante (antes do frigorífico elétrico) e entra na indústria química. O poste telefónico e os seus fios transporta(m) comunicações humanas. Natureza dominada e tecnologia útil - eis o conteúdo da fotografia.
Volto à ideia de arte abstrata. A fotografia indica a realidade (social) mas também é arte. Bernardino Pires, aqui, juntou os dois elementos.
Para finalizar, socorro-me de ideias técnicas sobre a tecnologia de comunicação e de que me apropriei no sítio onde a fotografia foi originalmente colocada. Traçado dos CTT com travessas metálicas e cruzeta de travagem do mesmo material. Na empresa APT/TLP (áreas metropolitanas de Lisboa e Porto), as travessas eram de madeira e em vez da cruzeta para travar a estrutura usava-se uma escora metálica do extremo da travessa inferior para o poste a fazer um ângulo de 45º. Cada poste tinha "26" circuitos físicos, mas, nalguns traçados aéreos, um par de circuitos físicos podia ser usado para transportar circuitos conhecidos por "circuitos fantasma". Entre Azeitão e Palmela e Azeitão e Setúbal funcionaram circuitos destes. E dois circuitos fantasma podiam ainda transportar um superfantasma. Circuitos fantasma ou de altas frequências, que faziam a interligação entre centrais telefónicas. No Porto, fora da cidade, existiram desses traçados, depois substituídos por cabos de cobre.


terça-feira, 11 de junho de 2019

Bernardino Pires (11)

Esta fotografia de Bernardino Pires (espólio de Daniel Pires) mostra uma edição complexa. Se noutras imagens, eu vi uma forte tendência neorrealista, nesta o trabalho interno de produção leva-me a outro terreno. Não posso escrever que ele seguiu o guião das propostas formalistas da fotografia, por oposição ao realismo fotográfico, e defendeu o ideal de arte fotográfica como o irrepetível, em confronto com as ideias de aura e repetitibilidade, como teorizou Walter Benjamin. Também não escrevo que o expressionismo na versão cinematográfica o entusiasmou, mas ali há traços que o justificam. E, ainda, não conheço todas as aplicações à fotografia do construtivismo russo, nomeadamente o húngaro László Moholy-Nagy, depois professor na Bauhaus, mas a geometrização da fotografia lembra-me essa escola experimental desaparecida às mãos nazis.
O trabalho na fotografia, geometrizado, seria uma tentativa de aplicação das inovações e descobertas que ele prosseguia no trabalho profissional de ilustrador e produtor de formas publicitárias estáticas. Certamente que Bernardino Pires conhecia as correntes mais modernas de arte europeia, devido à sua profissão e a contactos com outros artistas, À tertúlia fotográfica associavam-se outros interesses culturais. A experimentação, portanto.
Deixo duas ideias, a primeira das quais para realçar o lado maquínico - o comboio com máquina a vapor por cima da ponte de ferro (D. Maria Pia, Porto). Há uma grande simbiose, que nos faz esquecer que o comboio transporta pessoas e bens. Daí o lado formalista, o do relevo da forma sobre o conteúdo. Um outro elemento, menos importante, é o do poste telefónico, a realçar a segunda conceção da palavra comunicação, além do transporte, como teorizou James Carey em obra infelizmente curta.
A segunda ideia, sobre a tecnologia da fotografia, retiro-a da interpretação dada por Daniel Pires: "trata-se de um trabalho de retoque (muito) numa fotografia de alto contraste. Como se pode observar na imagem, a luz incide no lado esquerdo (o sol da manhã), a fotografia teria sido feita na margem do Porto. O trabalho de retoque ( amplicópia 30x40 ) no arco da ponte, no gradeamento, no comboio, e também no poste dos telefones ("canecas"?), procurou realçar a fotografia com o objectivo de a tornar mais legível. O efeito final é "quase" como um negativo. Naquela época eram feitas várias reproduções (por vezes sobreposições com outras fotografias) para conseguir a "edição"/composição da imagem".
Conclusão: como disse um dia Bernardino Pires, a fotografia não é a máquina mas o homem.


segunda-feira, 10 de junho de 2019

Bernardino Pires (10)

A assinatura da fotografia, no canto inferior direito, indica BPires 1966. A imagem revela três centros de atenção. Seguindo de cima para baixo e no sentido dos ponteiros do relógio, há um cartaz da SNCF (Société Nationale des Chemins de fer Français) e mostra uma jovem sentada e encostada a lugar confortável, de ar jovial e com roupa a lembrar o verão. Era uma época de grande emigração para França e Alemanha e muitos dos portugueses que queriam fixar-se naqueles países viajavam certamente com comboios ali destinados (embora com mudança em Hendaia, devido à diferença de bitola face a França).
O segundo centro de atenção é a cabina telefónica (telefone público). Cerca de 30 anos antes do início da massificação do telemóvel, o telefone público era uma forma de contacto muito usado em especial na rua ou em locais de férias e de grande movimentação de pessoas. O modelo de cabina era vetusto, de madeira e um manípulo pouco prático para abrir a porta. Dois anos depois da fotografia, a identificação da empresa mudaria - em 1968 a inglesa APT dava lugar à portuguesa TLP (Telefones de Lisboa e Porto), a primeira empresa pública do país a par dos CTT.
O último ponto de atenção - e quiçá mais importante - é o do casal de meia idade, certamente a aguardar o comboio de regresso a casa, evidenciado pelo olhar de ambos para o lado direito da fotografia. Seria final da primavera, pela análise da roupa ligeira da mulher e sapatos abertos em frente e pelo guarda-chuva do homem, a precaver um aguaceiro. Além da mala de senhora, conto quatro malas ou sacos: um saco de sementes, uma mala de viagem e uma mala mais pequena para transportes de produtos frescos - podia ir de legumes a um gato. Há ainda um saco de asas, que a mulher protege com a mão esquerda.
Reparo nos rostos do casal. Ele, de barba por fazer e chapéu na cabeça, parece confiante no futuro. Ela tem um ar pensativo, não tão confiante mas a aparentar serenidade.
Talvez a fotografia de Bernardino Pires traga um quarto centro de atenção, agora por oposição: a publicidade, com juventude, conforto e apelo à viagem, é a vida imaginada como ideal; o retrato do casal, com a sua transumância, é a vida real, bem menos glamorosa e mais dura. Ou escrito de outra maneira: a modernidade expressa no cartaz distancia-se da tradição do modo de vida do casal forasteiro.
Última especulação minha: o casal estivera no Porto a visitar familiares e amigos e regressava à terra, com provisões agrícolas. Para mim, eles viajariam para Penafiel ou Marco de Canaveses.
[fotografia de Bernardino Pires, espólio de Daniel Pires. Originalmente, publicada em https://www.facebook.com/groups/1628946184001729/]


quarta-feira, 5 de junho de 2019

Bernardino Pires (9)

Ontem, publiquei uma fotografia de Bernardino Pires, tendo como centro o vendedor de gelados (sorvetes era a designação à época). Hoje, edito uma ilustração dele sob o mesmo tema e que fazia parte de um conjunto de nove postais que editou quando proprietário da tabacaria-livraria Estrela, na rua de Santo Ildefonso (Porto), entre 1960 e 1967. A repetição temática em duas artes distintas indica uma preocupação semelhante de mostrar a realidade observada. Se a fotografia envolve um contexto de pessoas e objetos em ação e busca a profundidade além da largura e o comprimento, a ilustração é plana fixa apenas o necessário. Com cores vivas e desenho objetivo, o sorveteiro vestia farda, incluindo boné e botas. De ar otimista, o homem desloca-se rapidamente para o seu local de venda, como se vê através da deslocação das rodas. O carro está identificado com a inscrição "sorvetes" na lateral e incorpora duas pequenas bandeiras, à frente e atrás, e o desenho de um pequeno barco à vela, marcador de frescura. A assinatura era Serip, inversão do nome Pires [arquivo Daniel Pires].



terça-feira, 4 de junho de 2019

Bernardino Pires (8)

A história desta fotografia de Bernardino Pires é rapidamente apreensível, pelo que não vou escrever sobre ela. Mas interpreto alguns elementos secundários.
Mau grado o centro da imagem, a atenção das pessoas está no oposto. Logo mais dificuldades - não sabemos o ano, a rua e o que está a passar-se nas costas do homem dos gelados. Das figuras, olho para a esquerda: há duas crianças, uma com luz solar a banhar a sua cabeça e a outra de mão dada com a mãe. Logo a seguir, uma mulher madura segue de calçada com sapatos de tacão alto. Ela tem dificuldade em se movimentar - trocou a comodidade pelo lado de vaidosa que vai à festa. À direita, duas mulheres fotografadas servem para ajudar a identificar aproximadamente a época através dos penteados - meados da década de 1950.
O dia é de festa. Arrisco a que seja em junho, no tempo dos santos populares. A dimensão da rua não me permite reconhecer a localização, pelo que só posso especular. Três pistas: a rua tem um empedrado habitual na cidade, apresenta um perfil horizontal e ao fundo há outra rua que sobe, que podem eliminar algumas dúvidas de localização.
(espólio do filho Daniel Pires)


segunda-feira, 3 de junho de 2019

Bernardino Pires (7)

Gosto particularmente da composição da fotografia de Bernardino Pires, a primeira em baixo. O local é a Ribeira do Porto, próximo da ponte D. Luís, que se observa em fundo. O mercado é informal. O fotógrafo encontrou vendedeiras de legumes e de pequenos animais vivos. Seria outono ou inverno, a ver pela roupa da mulher, guarda-chuva da criança e chapéu do homem. Das imagens que eu conheço de Bernardino Pires, esta é uma construção para a máquina fotográfica, com os modelos a olharem para a câmara.
Volto à roupa: do xaile, avental e socos (socas) da mulher aos tamancos de madeira do rapaz e ao sobretudo do homem. E detenho-me no olhar: incerteza nela, desconfiança nos dois companheiros da imagem. O fotógrafo deve tê-los abordado não como cliente mas apenas para fazer o retrato, o que motivou as suas expressões. Há duas caixas de animais, a de cima, mais evidente, de aves, a de baixo talvez de coelhos. O conjunto de vendedores está no passeio junto à margem do rio. O fundo da paisagem é, para mim, majestoso: a ponte, o mosteiro (quartel) e escarpa da serra do Pilar, esta densamente povoada (fabriquetas?), e o rio sereno. O dia estaria húmido, sem sol.
A segunda imagem, tirada no mesmo local mas em dia de sol, mostra o potencial cliente, de fato, gravata e sobretudo, a inquirir preços dos galináceos. A vendedeira está de costas mas a fotografia permite-nos ver os adereços de vestuário, a incluir o lenço enrolado na cabeça e uma grossa argola no ouvido. As duas jovens, do lado direito da imagem, são parecidas no vestuário e nos gestos, possivelmente acompanhando o homem mas nada interessadas em animais vivos. As saias e casacos e o estilo de penteados do cabelo que usam indicam tratar-se de uma imagem previsivelmente do começo da década de 1950.
Por detrás das duas mulheres, a porta do prédio número 24 indicia uma adega (tasco ou tasca), a associar o trabalho e o lazer. À esquerda, por detrás da cabeça do comprador, há uma placa presa à parede, a lembrar as que indicavam os serviços dos CTT.
A última imagem, já aqui abordada e comentada, fornece-nos outro ângulo do mercado informal, com um novo potencial cliente a abordar as vendedeiras e igualmente bem vestido. Além dos comentários surgidos na inserção anterior da imagem, noto o ar sereno - como o rio da primeira imagem. Ou uma quase sabedoria da espera que as vendas se efetuem, com os vendedores sentados ou em cócoras, como a figura no extremo esquerdo.