sexta-feira, 22 de abril de 2005

UMBERTO ECO (II)

[continuação do post de 19 de Abril]

A misteriosa chama da rainha Loana, romance de Eco, editado pela Difel, é um título que esconde uma admirável narrativa e que nos conduz ao mundo dos livros - como Em nome da rosa, referido em post anterior - e à banda desenhada.

umbertoeco1.jpgA história conta-nos o AVC de Arthur Gordon Pym (p. 14), perdão Giambattista Bodoni (nome de um célebre tipógrafo italiano, de que eu falarei num próximo post), ou melhor Yambo, e o seu lento acordar desse grave acidente.

Nasce uma memória de papel, pois Bodoni/Yambo perdeu a memória do passado e sua reconstrução dá-se a partir de relatos e registos dos que estão perto dele ("tens uma memória de papel. Não de neurónios, mas de páginas", p. 87). Ou seja, a partir do nevoeiro, que é voltar à vida ("O nevoeiro fascinava-te. Dizias que tinhas nascido dentro dele", p. 36).

É um tempo onde (re)descobre Paola, a mulher, a linda Sibilla, a sua braço-direito da loja de livros antigos, e a recordação de Lila, memória afundada na juventude, amor platónico (para quem representara no teatro, como se não houvesse mais ninguém que ela). Mas se Lila desaparece no limbo da distância e o papel de Paola é assumido de imediato, Yambo não se recorda se alguma vez foi para além da relação de trabalho com Sibilla. Pelo que gastaria o seu cérebro sem memória num exercício incessante; procurava a "misteriosa chama" (no singular mas também no plural) (ainda não sabe o que significa, isto é, é uma memória que surge descontextualizada, p. 69, p. 88, p. 221).

A ideia difusa que perpassa pelo livro e acaba no título vinha de um livrinho de capa policromática chamado A misteriosa chama da rainha Loana (p. 235). Era uma história tonta do princípio ao fim (apesar de nunca o ter desiludido): "Os protagonistas [...] vão parar a um reino misterioso onde uma rainha igualmente misteriosa guarda uma misteriosíssima chama que proporciona vida longa, ou até mesmo a imortalidade, visto que Loana, sempre belíssima, reina sobre uma tribo selvagem há dois mil anos". Uma expressão como misteriosa chama e o suavíssimo nome de Loana ficaram na memória gasta de Yambo, que no pós-AVC (acidente vascular-cerebral) procurava exercitar. A chama contra o nevoeiro do esquecimento. Mas a Loana da BD nunca lhe revelaria o rosto de Lila, apesar dele pedir: "Ó boa rainha Loana, em nome do teu amor desesperado, [peço-te] apenas que me devolvas um rosto" (p. 386).

Dos livros da escola primária à banda desenhada

O livro de Eco é também, como escrevi acima, sobre a banda desenhada. Mas também do cinema, como as evocações do Sargento York, Canção triunfal (p. 350), Casablanca ou Road to Zanzibar, com Bing Crosby, Bobe Hope e Dorothy Lamour, e das novidades tecnológicas, como a motoreta Vespa (p. 379).

Nascido em 1932, Umberto Eco coloca o seu herói como tendo nascido no ano anterior [apesar de não dito, parece-me que a fotografia de uma criança a ser beijada na face por outra, na p. 256 lhe pertence, com uma cara larga como a conhecemos em todos estes anos em que Eco edita livros]. É, pois, se quisermos, uma revisitação à sua infância e adolescência - na perspectiva política (o tempo do Duce) e cultural (os livros que lia, as descobertas que fazia e tudo o que mantinha em segredo). Logo à cabeça surgem os livros de Júlio Verne e Emilio Salgari, este com o seu Sandokan, o tigre da Malásia, a par dos postais de propaganda, cartazes e canções dos balilas (juventude fascista), a Paris misteriosa de Fantomas, os nevoeiros de Sherlock Holmes (p. 200), Búfalo Bill e o Super-Homem.

Era um tempo de descoberta de heróis que os livros da escola primária nunca tinham descrito, tão bem compreendido nas onomatopeias que ilustram o livro (a par das imagens dessas BDs): "Arf arf bang crack blam buzz caim spot tchaf tchaf clamp splash crackle [...]" (p. 222). Ao comparar os livros escolares e a banda desenhada, Yambo anotava que "provavelmente construía muito a custo a minha consciência cívica" (p. 226). E pergunta na página seguinte: "Crescido em idade e sabedoria, ter-me-ei mais tarde aproximado de Picasso estimulado por Dick Tracy"? Nessa busca incessante de reconstituir a memória, surgiria A misteriosa chama da rainha Loana (p. 235) [reprodução das páginas do livro autorizada pela Difel].

umbertoeco2.jpg

Yambo/Eco havia apanhado o ensino primário num tempo em que Mussolini estava no poder e participava na segunda guerra mundial ao lado da Alemanha, enquanto prosseguia o seu expansionismo na África em direcção à Etiópia. Escreve: "Folheei os livros das classes seguintes, mas não havia referências à guerra nem sequer no da quinta classe, apesar de ser de 1941 - quando a guerra já se tinha iniciado havia um ano. Tratava-se de uma edição dos anos anteriores, e nele só se falava de heróis da guerra de Espanha e da conquista da Etiópia. Não era bonito falar dos livros escolares sobre os incómodos da guerra, e fugia-se do presente celebrando as glórias do passado" (p. 176). Mas no livro da quinta classe havia "uma meditação sobre as diferenças raciais, com um pequeno capítulo sobre os judeus e sobre a atenção que se devia dedicar a esta estirpe pérfida" (p. 177). E também "fotos de aborígenes comparadas com as de um macaco, outras mostravam o resultado monstruoso do cruzamento entre uma chinesa e um europeu".

Com a entrada dos Estados Unidos na segunda guerra mundial, a favor dos aliados e contra o eixo Berlim-Roma, as bandas desenhadas em Itália sofreram uma curiosa alteração. Na colecção Corriere dei Piccoli, os heróis americanos italianizaram-se, com os balões a serem retirados e trocados por longas legendas (p. 214). Assim, o gato Felix transformou-se em Mio Mao, Hans e Fritz ficaram Bibì e Bibò, Jiggs e Maggie ficaram Arcibaldo e Petronilla e o rato Mickey adquiriu um nome sonoro: Topolino. Diz o narrador Yambo: "De uma semana para outra, sem qualquer aviso, a mesma aventura do Rato Mickey [que morrera no livro anterior] continuava como se nada se tivesse passado, mas o protagonista era agora um tal Toffolino, [...] e os seus amigos chamavam-se Mimma, em vez de Minnie, e Pippo (Pateta)" (p. 219). Os americanos passavam a ser os maus. Pergunta o mesmo narrador: "teria [eu] consciência, na altura, de que o Rato Mickey era americano"?

[continua]

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