terça-feira, 31 de maio de 2005

INDÚSTRIAS CULTURAIS - III

[continuação da mensagem de 30 de Maio]

Indústrias culturais e desmaterialização

Outro texto é o da Comissão Inter-Ministerial para o Audiovisual (1997), que parte da concepção de que, num contexto de convergência tecnológica, a progressiva desmaterialização dos processos de produção e a crescente inter-operacionalidade dos suportes provocados pelo digital vão desmaterializando os próprios circuitos de distribuição, dando forma física ao produto final apenas quando este chega ao consumidor.

Os autores do relatório entendem que, enquanto a sociedade industrial se baseia na produção em massa de produtos, a sociedade da informação gira em torno da reprodução em massa de conteúdos. O elemento chave do novo sistema económico é o produtor/editor que precisa ter a capacidade para seleccionar os projectos apropriados e uma infra-estrutura de distribuição que assegure a sua efectiva comercialização. Os passos fundamentais na comercialização de qualquer tipo de conteúdo são comparáveis aos de qualquer outro produto: design, produção, distribuição, comércio e consumo. Cada passo na cadeia de valor constitui-se como um mercado próprio, com um comprador e um vendedor específicos, culminando no consumidor final (confrontar com esquema da Andersen, no final da mensagem).

O relatório considera ainda a convergência crescente. Num futuro próximo, todos os conteúdos originais serão produzidos e copiados num formato digital, transmitidos através de cabos digitais e recebidos por computadores. Continuarão a existir formatos tradicionais, como o cinema, livros, jornais, mas uma crescente proporção das receitas de cada media será originada através de canais digitais. Isto implicará a existência de impérios, que sustentem uma lógica de mercado assente na interdependência dos sectores das indústrias culturais e de conteúdos.



Cidade e cultura

Dentro da perspectiva da América latina sobre indústrias culturais, Hamilton Faria (2003) desenvolve uma perspectiva da cultura urbana e entrosamento com as culturas populares, tradicionais e de rua, num país de rico simbolismo cultural como o Brasil. Para o autor, a cultura está para além do mundo artístico/actividade cultural especializada. Ele escreve sobre cultura como arte, pensamento, imaginário, valores – o sentido mais amplo da palavra. Ao falar em cultura fala de acontecimento cultural da sociedade. A cultura apresenta-se como uma dimensão da realidade e não como um cenário onde se movem actores e vivências sociais significativas. Faria refere constantemente cultura e cidade. Para ele, o acto de criar é o fundador da cultura, responsável pela riqueza cultural da sociedade. Mas apenas algumas manifestações adquirem este estatuto, em especial as legitimadas pelo mercado e pela indústria cultural. Como os processos criativos são, muitas vezes, lentos e sem resultados imediatos, são necessários critérios para obtenção de resultados. Um é o mapeamento cultural (da cidade): a visibilidade da produção (local) (Faria, 2003: 36). Outro instrumento é dado pelos indicadores culturais. Faria reflecte sobre a identidade na gestão cultural, em políticas culturais como novas saídas para as artes, no papel do público: (1) para além do consumidor-produto-espectador, (2) passa para criação/fruição-processo-participação (Faria, 2003: 38).

Nas grandes cidades, há uma nova sociabilidade, devido a multiplicidade étnica, de manifestações criativas, identidades de novos países (em emergência), que desconstrói muitos dos padrões anteriores de sociabilidade (Faria, 2003: 39-40). Não há uma universalidade mas diferenças e identidades distintas. E as leis culturais têm de seguir estas novas dimensões de cultura urbana. Para Faria, sem negar os templos culturais – o centro cultural, a casa da cultura, o museu, a escola, a biblioteca, o teatro, lugares já consagrados do acontecimento cultural –, as políticas culturais devem olhar para as gentes e procurar propostas de realização próximas delas. Surge a ideia de descentralizar. Que não é desconcentrar equipamentos e espalhá-los pela periferia, apenas. Descentralizar é fortalecer actores culturais autónomos; confiar na sua capacidade criativa e estimular a participação.

Cadeia de valor das indústrias culturais (ou do audiovisual)

A Arthur Andersen (2002) desenvolveu um modelo de cadeia de valor das indústrias culturais (ou de audiovisual), constituído por oito elementos, agrupados em três conjuntos. Estes são: 1) produtores de conteúdo – a) direitos de autor; b) produtores de conteúdo; c) direitos dos distribuidores; 2) programadores – a) programadores; b) agregadores; 3) difusores – a) redes; b) fornecedores de acesso; c) vendedores de equipamentos. Nada é dito quanto à recepção, elemento primordial em toda a cadeia de valor. Por isso, construi um modelo simples, que contempla esta vertente:

andersen.bmp

[nota: tópicos dados em aula de Análise das indústrias culturais e de conteúdos em Portugal, no mestrado de Ciências da Comunicação da Universidade Católica Portuguesa, em Novembro de 2002]

Leituras:
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Arthur Andersen (2002). Outlook of the development of technologies and markets for the European Audio-visual sector up to 2010. União Europeia (versão online)
Jesús Martín-Barbero (1997). Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ
Walter Benjamin (1936/1985). "A obra de arte na era da sua reprodução técnica". In Eduardo Geada (org.) Estéticas do cinema. Lisboa: D. Quixote
Enrique Bustamante (2002). Comunicación y cultura en la era digital. Industrias, mercados y diversidad en España. Barcelona: Gedisa
Néstor Garcia Canclini (1980). A socialização da arte. São Paulo: Cultrix
Roberto Carneiro (coord.) (2000). As indústrias de conteúdos culturais em Portugal. Lisboa: Forum M (CD-ROM)
Hamilton Faria (2003). "Políticas públicas de cultura e desenvolvimento humano nas cidades". In Leonardo Brant (org.) Políticas culturais, vol. 1. S. Paulo: Manole
Isabel Ferin (2002). Comunicação e culturas do quotidiano. Lisboa: Quimera
Ministério da Cultura (1997). Relatório da Comissão Inter-Ministerial para o Audiovisual. Lisboa: Ministério da Cultura
Maria Lurdes Lima Santos Lima (coord.) (1998). As políticas culturais em Portugal. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais
Maria Lurdes Lima Santos (1999). "Indústrias culturais: especificidades e precariedades". OBS, 5: 2-6
Armand Mattelart e Michèle Mattelart (1997). História das teorias da comunicação. Porto: Campo das Letras
Ramón Zallo (1992). El mercado de la cultura. Donostia: Tercera Prensa

1 comentário:

Biranta disse...

Vim até aqui do Webjornal e não é sobre o post que vou escrever, é sobre o seu "apelo": "leiam jornais". Lá ler eu leio, pouco, porque já me cansa tanta cretinice, agora comprar não compro, de propósito, premeditadamente. Se os jornais nada têm a ver comigo e com a minha maneira de pensar, eu nada tenjho a ver com jornais e não tenho que sustentar uma actividade perniciosa. Quando os jornais forem, realmente, democráticos e deixarem de ser pré-censurados, excluindo todas as opiniões que não se enquadrem nos grupos do compadrio e do tráfico de influências, eu passo a comprar jornais, com o mesmo afinco com que, hoje, os desprézo. O mal, deste tipo de gente, é não contarem com os outros e com as capacidades e o poder dos outros. Nós também temos poder sabiam? Vão aprender!