quarta-feira, 29 de junho de 2005

JOSHUA BENOLIEL NA LISBOAPHOTO 2005

[imagem parcial da fotografia de Joshua Benoliel - "Embarque do Corpo Expedicionário Português para a Flandres", 1917 - retirada do álbum LisboaPhoto 2005, p. 62]

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Chovera ou prometia chover e era Inverno. As duas mulheres à esquerda transportam guarda-chuvas e os seus casacos compridos estavam abotoados. O chão parece um pouco enlameado, devendo sujar os sapatos de fivela e, presumo, de pequeno salto de ambas as mulheres. Atrás, uma terceira mulher tem um rosto mais entristecido. De lenço negro, possivelmente já se havia despedido do namorado ou marido, a caminho da Flandres, onde muitos portugueses morreriam na frente da batalha (La Lys, 9 de Abril de 1918). Talvez o namorado fosse o soldado de bigode que vemos à direita, cabisbaixo, já a caminhar.

O rapazio, do lado esquerdo da imagem, acompanha a marcha dos soldados entre o medo e o espanto da movimentação. Verifico a cor da pele deles, muito meridional. Mas fixemo-nos agora no casal da frente.

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A rapariga, de rosto muito fino e estatura mediana, tem os olhos semicerrados. O soldado pega meigamente no queixo da mulher prestes a rebentar em choro, após o último beijo. Eles sabiam que a despedida podia não ter regresso. Na mesma mão onde segura o guarda-chuva, tem um pequeno embrulho preso por corda. Não se sabe se o embrulho se destinava ao soldado, já de mochila às costas, de um pequeno haver dela ou de peça de roupa para entregar a uma cliente (efabulemos que ela era costureira).

À parte estes dramas pessoais, o quadro deve ser compreendido ao nível mais vasto da sociedade. Depois de se ter comprometido com o país que não enviaria tropas para a frente da batalha da Primeira Guerra Mundial, Afonso Costa, primeiro-ministro, mudou de ideias. O país atravessava uma conjuntura política e económica difícil; melhor não ficou, arrastando-se por entre o descontentamento e a escassez de bens de primeira necessidade, enquanto chegavam as notícias das primeiras baixas em combate. A repressão interna teve lugar no Verão e Outono desse mesmo ano de 1917. No final do ano, Sidónio Pais assumia o poder, instaurando uma ditadura militar (no final de 1918, Sidónio seria assassinado).

Possivelmente, o namorado daquela mulher ainda muito jovem (19 anos? 20 anos?) não regressou ao cais da estação de Santa Apolónia. Qual terá sido o percurso da rapariga? Arranjou outro namorado, casou e teve filhos? Ou ficou viúva para toda a vida? Que alegrias teria, passados os anos de juventude?

A acompanhar as fotografias de Joshua Benoliel há um texto de Emília Tavares, em português e inglês. Retiro um pequeno excerto: "As imagens que este novo tipo de jornalismo [em cujo fotojornalismo se insere Benoliel] produziu são o reflexo de uma nova relação visual na sociedade de 1900, em que a cultura urbana, com todos os elementos a ela associados (comércio, transportes, lazer, movimento, luz, trânsito, arredores, favorecidos, desfavorecidos, vistas gerais, pormenores, lapsos de tempo, revoluções, homenagens, escala humana, signos), participou de forma imbricada e determinante".

Esta e outras imagens de Benoliel podem ser vistas na Cordoaria Nacional (relevo para imagens do rei D. Carlos e família e implantação da I República), juntamente com filmes do começo do século XX, integradas na LisboaPhoto 2005, cujo álbum reproduzo abaixo a capa [Hannah Starkey, The dentist, 2003, prova cromogénea, Interim Art/Maureen Paley, Londres] (assim como o do Salão Lisboa 2005, de ilustração e banda desenhada).

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1 comentário:

Anónimo disse...

A interpretação da foto é meiga e comovente. Mais ainda do que o limitado contorno do par, a inclinação atenta dele e a pacífica espera dela.

Nem o Joshua sabia da magia deste instantâneo que captava.

Todo o artigo, de resto, vem excelente, como sempre a despertar curiosidade para os factos que anuncia.