sexta-feira, 26 de maio de 2006

CASO CARRILHO (I)

Não li o livro Sob o signo da verdade de Manuel Maria Carrilho nem vi o programa Prós e Contras da RTP. Logo: sobre estas realidades não posso dizer nada. Mas posso destacar as fontes secundárias que li: textos de jornalistas e analistas (artigos de opinião) e um blogue com os seus comentários. Dessa produção toda, destaco:

1) necessidade dos jornalistas visados criticamente por Carrilho repudiarem a sua perspectiva,
2) apresentação de dois estudos, no Expresso de 20 de Maio, sobre a "produção" das agências de comunicação (sete em dez notícias têm origem em agências de comunicação e gabinetes de imprensa), embora tal não signifique "comprar" jornalistas,
3) defesa do princípio da independência dos jornalistas no Público (24 de Maio), em editorial do director,
4) algum posicionamento político-partidário nos textos dos analistas dos media editados nos jornais,
5) agendamento reproduzido nos blogues, como mostra a citação no Diário de Notícias de 25 de Maio (blogue de Daniel Oliveira), mostrando a falta de originalidade quer do blogue quer do jornal que reproduz a citação, numa ideia de circulação circular da informação, à Bourdieu,
6) agendamento reproduzido nas cartas do leitor (caso do Público),
7) intervenção da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), com nota publicada ontem e entrevista do seu presidente anunciada para a edição de amanhã do Diário de Notícias.

Como síntese destes pontos, regista-se uma confluência de agendas - política, mediática, pública. Neste caso, foi a agenda política a arrancar (a edição de livro do político Carrilho), seguida logo pela mediática (assunção contra dos jornalistas, acusando aquele de se vitimizar) e da pública (o assunto entrou nas cartas ao director dos jornais e nos blogues).

O tema principal da discussão é: relação entre fontes (ou intermediários, as agências de comunicação) e jornalistas. Esta funciona em dois sentidos: 1) existe cooperação entre os dois lados (por exemplo, um deputado precisa do jornalista para divulgar o seu trabalho junto do público; o jornalista precisa da informação do deputado para escrever a sua notícia), 2) autonomia, cada lado tem os seus interesses, profissionalmente antagónicos. Por vezes, há conflito, quando um dos lados não respeita o outro (quebra de embargo; informação truncada quer pela fonte quer pelo jornalista). A esta relação de cooperação/autonomia/conflito chama-se negociação - cada um dos lados ganha ou perde com o relacionamento, podendo ainda estabilizar uma relação de compreensão mútua.

Há outras hipóteses: 1) se jornalista e fonte estabelecem uma longa relação (por exemplo, no parlamento europeu, no futebol, nos desportos motorizados), a separação de interesses ou autonomia pode atenuar-se (criação de amizade), com perda de independência para quem reporta os acontecimentos (por isso, é salutar mudar regularmente os interlocutores). Esta relação pode também deteriorar-se se as fontes pressionam não apenas os jornalistas mas também as organizações (como retirar publicidade).

Anoto ainda três aspectos, sendo o segundo subsidiário do primeiro:

1) o fornecimento de informação por instituição ou entidade a trabalhar para aquela a determinado jornal ou jornalista (exclusivo, informação mais detalhada), significando reconhecimento por notícias anteriores,
2) esta proximidade de interesses pode configurar favorecimento ou distorção (e será o caso apontado no livro de Carrilho, ao acusar uma agência de comunicação de veicular informação positiva de um lado e prejudicar outros agentes sociais),
3) criação de pseudo-eventos. Neste caso, cito Estrela Serrano (Para compreender o jornalismo, 2006: 169): "Os políticos e os jornalistas são os maiores criadores de pseudo-eventos". O livro de Carrilho enquadra-se neste tipo, com multiplicação de notícias e ressurgimento político e mediático do seu autor.

Um penúltimo ponto nas minhas notas: o que se mostra e o que se esconde, o público e o privado. Toda a discussão remonta a uma ocorrência antiga: um vídeo usado em campanha eleitoral, em que Carrilho, candidato à câmara municipal de Lisboa, se fazia acompanhar pela família. A pergunta é: 1) um político em campanha deve valer pelas suas competências e propostas eleitorais, ou 2) isso e mais a imagem familiar?

O último elemento dá pelo nome pouco científico de "boa" ou "má" imagem. Ao longo dos anos, Carrilho não terá sabido cultivar uma "boa imagem", mostrando distanciamento (mesmo arrogância) face aos media. Independentemente do trabalho sério e objectivo que o jornalista faz, este gosta de ser bem considerado pelas fontes. Carrilho (ou Rui Rio, noutro quadrante político) não fazem esse "cultivo" dos jornalistas. E Carrilho, nos últimos anos, estendeu esse distanciamento a outros níveis - desafiando os líderes do seu partido a eleições internas.

A longo prazo, o distanciamento (ou frieza no tratamento com os media) pode ser fatal (repito que isto ocorre sem questionar a seriedade e objectividade jornalísticas). A candidatura de Carrilho foi sufragada em eleições. Ele perdeu e deveria, quanto a mim, tirar ilações. Escrever sobre a derrota, atirando culpas para outros e a esta distância temporal - não li o livro, apenas o que têm escrito sobre ele -, parece-me errado.

Apesar de tudo, a discussão - muita dela, superficial e algo despeitada - teve um mérito: discutir a relação entre fontes e jornalistas. E destacar alguns dos espaços de fragilidade, aqui representados. Recomendo, assim, a leitura do livro de Estrela Serrano (Para compreender o jornalismo, 2006), onde a autora, na função de provedora do leitor de jornal, trabalhou sobre notícias e modos de percepção dos acontecimentos por parte de fontes e jornalistas.

[continua noutra mensagem]

Sem comentários: