segunda-feira, 29 de maio de 2006

OS NÚMEROS DO CINEMA

Segundo dados divulgados recentemente pelo ICAM – Instituto de Cinema, Audiovisual e Multimedia, o número de espectadores em Março deste ano registou uma quebra de quase um quarto do total face a igual período de 2005, alcançando pouco mais de 1,1 milhões de entradas nos cinemas. Isso fez soar as sirenes de alarme da indústria, nomeadamente a exibição, e logo num momento em que se anunciam mais salas a abrir em Lisboa. O fenómeno da quebra de espectadores do cinema não é, aliás, um problema nacional mas europeu e americano.

Avançam-se várias explicações. Uma delas é o consumo de televisão, tema recorrente desde a massificação deste meio nos anos de 1970. Mais tarde, o videogravador familiar, ao permitir o registo de programas, caso dos filmes, baixaria o número de saídas ao cinema. Em simultâneo, nasciam as lojas de vídeo, onde se podiam alugar ou comprar filmes em formato magnético (VHS).

Mas é, nos anos mais recentes, com a digitalização, que aumenta a regressão nas idas ao cinema. O filme em DVD e o barato reprodutor "made in China" tornam mais adequada a designação cinema em casa e a correspondente acção de ver um filme no sofá da sala de estar, sem a preocupação do espectador da frente dificultar a visão do ecrã.

O encanto da ida ao cinema, desde os anos 1940 e 1950 até antes das duas décadas finais do século XX, era a saída. Falava-se em consumos culturais de saída distintos dos consumos no lar (ler jornais e livros, ver televisão, ouvir rádio). Esse tipo de saídas era quase uma festa. Preparava-se todo um cerimonial, vestindo-se a melhor roupa e convidando familiares e amigos, fomentando uma tertúlia após o filme. As estrelas e os galãs enchiam as conversas: a beleza, a elegância, a força, a fantasia, o humor, a tragédia. Ria-se e chorava-se na sala escura do cinema. A gorjeta ao arrumador fazia parte do ir ver uma fita e o dia eleito era o sábado.

Se, nos começos do animatógrafo, os espectadores comentavam, jocosamente ou a propósito, o silêncio passou a ser a regra de ouro. O filme era arte, pelo menos nos cinemas do centro da grande cidade. Distinguia-se a estreia e a reprise, esta às vezes com anos de distância. Como o consumo de cinema por indivíduo era raro em média, os filmes ficavam na memória. Correntes sociológicas diferentes diziam que o cinema era ou educação ou divertimento. Um pouco à semelhança da televisão: formar, informar, entreter.

Já nas três últimas décadas do século XX, com a banalização do cinema, houve uma espécie de dessacralização. Passava-se a ir sem a cerimónia de outrora, com jeans e ténis a substituírem o fato e gravata ou a saia pelo joelho. E os temas diversificavam-se: as comédias de Hollywood ou os filmes de António Silva nos anos 1930-1940 tornavam-se mais densos psicologicamente, e mesmo com temas polémicos ou chocantes. Chegava-se ao fim da ingenuidade enquanto espectadores (Casablanca, West Side Story, Música no Coração). Isto sem referir as salas mais recentes – ou algumas delas –, onde se levam bebidas e batatas fritas, com a banda sonora do filme a ser complementada por um certo ruminar dos espectadores. Neste aspecto, voltou-se ao começo do cinema.

A guerra dos formatos também levou à perda dos números de espectadores do cinema. No começo da massificação da televisão, alguns cineastas apostaram em formatos gigantes, como o 70 mm, cujos filmes passavam apenas em alguns cinemas.

Com o crescimento de zonas periféricas à cidade para habitação, os cinemas da “baixa” e de bairro perderam clientela. Para os menos agradáveis e abafados cinemas de centro comercial da periferia, de paredes forradas a tecido e já não de madeiras ou mármores, e para a televisão. Nesta, o género telenovela reformulava gostos estéticos. O filme de 90 minutos deu lugar à saga de 150 episódios, todos os dias transmitidos à mesma hora da noite, com um enredo de múltiplas histórias e lentidão na acção, de modo a apanhar-se a narrativa mesmo que ela não fosse vista durante alguns dias por um espectador ocupado, e frequentemente falado com sotaque brasileiro.

Televisão, vídeo e DVD marcaram o cinema, com este a definir-se como arte opondo-se aqueles, designados por indústrias de conteúdo. A digitalização, isto é, o uso de computadores, alargou-se a outras áreas, como as máquinas fotográficas, a indústria dos discos, os livros (chamados e-books ou livros electrónicos). Negócios assentes há décadas, muitos deles desde finais do século XIX, deram origem a novas actividades. Tudo isto em muito poucos anos. Ainda nos podemos lembrar que, há cinco ou seis anos, a nossa máquina fotográfica funcionava com rolo. Agora, fazemos fotografias e vídeos e colocamo-los em servidores da internet, como o Flickr e o YouTube.

Há um outro inimigo mortal do cinema – a pirataria. A mesma que fez diminuir o lucro das editoras discográficas. Filme estreado, filme copiado. As máquinas digitais têm essa simultânea vantagem e desvantagem: copiar com a mesma qualidade do original. E a internet é uma rede de rápida expansão dessas cópias, num processo muito difícil de controlar. Nunca se falou tanto de direitos de autor – da sua perda – como agora.

Claro que, apesar dos números menos agradáveis para os exibidores, o cinema não pode acabar. A ilusão na sala escura, a efabulação a partir da paisagem, de rostos bonitos e de aventuras fantásticas tem de persistir. A memória da humanidade em mais de cem anos assim o exige.

E, talvez por causa disso, os números de Abril foram positivos face a igual mês em 2005, com uma subida de 37,5% (1,730 milhões de espectadores). Para isso, contribuíram filmes como Idade do Gelo 2, Infiltrado, Scary Movie 4 e Instinto Fatal. Mesmo antes do Código da Vinci. Pelo menos, por instantes, o cinema está salvo.

[uma versão mais curta desta mensagem passa hoje de manhã, por volta das 10:00, em crónica na Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz]

[em baixo, fachada do Animatógrafo do Rossio, em Lisboa, hoje convertido em peep show]

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