terça-feira, 6 de junho de 2006

OS DESAFIOS DO JORNALISMO

A recente publicação do livro de Estrela Serrano, Para compreender o jornalismo, conjunto seleccionado de páginas da provedora do leitor, cargo que ela exerceu no Diário de Notícias durante o período 2001-2004, permite reconstituir uma época do jornal, as suas tendências e erros (humanos, logo assumidos). Trata-se de um texto bem escrito e elucidativo, em que a capacidade negocial, característica reconhecida na autora, está aqui bem presente. O equilíbrio entre o que lhe escreviam os leitores e as respostas dadas prova-se aqui: “a provedora não tem, por outro lado, elementos que lhe permitam afirmar que” (pág. 198), com os cidadãos e os leitores a merecerem o esclarecimento que a provedora não pode dar (pág. 81).

Adaptar as crónicas a livro é um género já usado por outros provedores (e uma aposta da editora MinervaCoimbra), parecendo-me fórmula inteligente para a compreensão de um período. Nem sempre os factos – e a sua análise no tempo de ocorrência – são compreendidos, por falta de contextualização suficiente na época a que reportam. A arrumação das crónicas semanais em capítulos temáticos dá mais consistência ao conjunto. As repetições dos problemas, caso de temas como o poder dos jornalistas e a auto-regulação, possibilitam duas leituras: 1) a repetição é evidente num processo em curso (crónicas semanais, com temas próximos ou semelhantes), 2) existindo temas iguais, a autora obriga-se a encontrar razões distintas, esclarecendo melhor o seu pensamento.

Serviço prestado pela provedora ao longo da sua actividade, detectam-se os seguintes movimentos: 1) responder ao leitor, a partir de práticas de bom senso, 2) solicitar ao director o seu comentário, 3) em grau menor, pedir ao jornalista visado a sua opinião.

Embora fragmentário, porque adaptado aos acontecimentos semanais e ao que os leitores escreviam, nota-se um apreciável esforço teórico no seu trabalho, ângulo que me interessa mais. Uma primeira linha a destacar é a preocupação em definir a disciplina do jornalismo. Apresenta três hipóteses: 1) o jornalismo quer ser uma ciência exacta mas não o consegue, 2) aproxima-se da ideia de historiador da actualidade, 3) é uma construção social da realidade como o coloca a produção teórica em geral (pág. 22).

Um outro objecto de estudo de Estrela Serrano é a tipologia de jornalismo. Contei cinco tipos. Os primeiros são um binómio: jornalismo de investigação e jornalismo de fontes, com aquele a não se satisfazer “com declarações oficiais ou oficiosas, confidências ou documentos disponibilizados estrategicamente” (pág. 117) e este a aproximar-se do designado “jornalismo sentado” (ligado ao computador). O seguinte é o jornalismo comercial, com os proprietários a apostarem em várias formas de atracção: investimento no conteúdo (informação, entretenimento, novas formas de publicidade), design e layout, e iniciativas de marketing (pág. 178). Há um terceiro, designado por jornalismo utilitário ou de serviço, com alusões directas a marcas e produtos dentro de textos noticiosos, e que Estrela Serrano vai buscar a Carlos Chaparro: “textos escritos em jeito de reportagem, com simulações narrativas temperadas de propaganda, sempre vinculados à oferta e busca de produtos e serviços” (pág. 88). O jornalismo de serviço engloba secções como culinária ou previsões astrológicas (pág. 118). Já o último, a que cunhei de jornalismo de fait-divers, dá destaque aos faits-divers e reality-shows (pág. 154), promovendo vedetas do mundo da música, das festas e anónimos fugazmente tornados famosos. Neste último, anote-se a crescente indiferença de tal tipo de jornalismo entre jornais de referência e populares ou tablóides, sem protecção da vida privada, aquilo a que a autora designa por “deriva tablóide”, com compressão dos textos, valorização do espectacular e do emocional nos títulos de primeira página, fragmentação e primado da imagem (pág. 180).

A um terceiro conceito dou-lhe o nome de tom de escrita. Para a autora, a atitude frequente de um jornal é procurar marcar distâncias perante uma informação recebida, através de enquadramento, linguagem e tom, notórios em títulos de primeira página (pág. 25). Ela chama a atenção para os critérios de selecção: os media privilegiam os acontecimentos considerados interessantes para os leitores. A maior parte dos acontecimentos seleccionados são-no pelo seu carácter sensacional, polémico e negativo. E, noutras partes do seu texto, enfatiza as mesmas ideias: o estilo do jornalismo centra-se na personalização, dramatização, conflito e fait-divers, tornando difícil a afirmação de ideias e argumentos que não se reduzam a slogans (e soundbites) (pág. 36), em que os títulos da primeira página são vistosos, sonantes, dramáticos, chamativos (pág. 78), apelativos e estimulantes, através das palavras, frases e imagens escolhidas para causar impacto (pág. 137). E, além disso, se a primeira página tem um tratamento mais dramático e de encenação, as notícias no interior são mais sóbrias. Claro que o título da primeira página é uma operação difícil e complexa no processo de produção do texto jornalístico, porque implica dar informação máxima num espaço limitado, condensando os dados disponíveis, e é através dele que se provoca adesão ou rejeição do leitor (pág. 133).

Ligação entre media e política e campanhas eleitorais são outros assuntos muito trabalhados ao longo do livro, quer porque os leitores questionaram a autora com frequência quer porque tais matérias têm constituído o centro da sua investigação académica nos anos mais recentes, representando um quarto pólo de atenção do seu livro. Mas também a análise das fontes de informação, em especial as anónimas, ocupou diversas crónicas da autora (e um capítulo de 13 páginas). Das práticas usadas pelas fontes, Estrela Serrano indica que elas: 1) libertam informação considerada importante, condicionada pelo embargo, 2) concedem exclusividade a um meio, 3) realizam fugas de informação premeditadas ou involuntárias (pág. 112).

Dada a frequência no recurso a fontes não explicitadas por parte dos jornalistas que acompanham a actividade política (pág. 119), a autora alerta para o uso exagerado de opiniões e palpites de fontes anónimas nas notícias. Tal é uma forma de camuflar a dependência de fontes oficiais, o que deve conduzir os jornalistas a uma reflexão sobre as suas consequências. Na identificação das fontes, ela escreve de modo sereno e didáctico: “um jornalista não deve, em princípio, utilizar documentos cuja origem desconhece, muito menos, «puxá-los» para título” (pág. 115).

Certamente que um livro sobre a provedoria do leitor teria de conter um espaço de análise das cartas ao director do jornal (pág. 191). Estrela Serrano elogia a pluralidade de vozes expressas no jornal em termos do espaço dedicado aos leitores. Contudo, mostra-se contrária ao uso frequente e arrogante de notas de redacção como respostas dos jornalistas a algumas cartas ao director. E, num outro registo, reflecte sobre o desconhecimento dos públicos por parte dos jornalistas. Apesar da sofisticação das medições de audiências, continua a ser pertinente a ideia que os jornalistas escrevem sobretudo para as suas fontes, pares e hierarquias (pág. 216).

Uma última nota, esta de sentido crítico. Sendo o livro uma recolha de temas trabalhados ao longo de três anos, sem sistematização prévia (apesar da organização em capítulos), um índice remissivo ajudaria. Dou alguns exemplos: balão de ensaio (pág. 63), critério de selecção (pág. 26), fontes (verificação de fiabilidade) (pág. 69), fuga de informação (pp. 64-65), interesse público (pág. 75), primeira página (pp. 66-67, 78), título (pág. 70).

1 comentário:

Anónimo disse...

parece-me bastante interessante. um bom dia Professor.