domingo, 10 de junho de 2007

VENEZUELA, BRASIL E AUTORIDADES REGULADORAS


Fernando Oliveira Paulino publicou um importante texto no sítio da Assessoria de Comunicação da Universidade de Brasília (Brasil), com o título Venezuela, Brasil e autoridades reguladoras, no passado dia 5, e que aqui reproduzo na íntegra, respeitando totalmente a ortografia do português no Brasil.

Houve um tempo em que raramente se ouvia falar em Venezuela na mídia brasileira. Ainda hoje, pesquisas demonstram o insatisfatório volume de informação veiculado sobre a realidade latino-americana. Mesmo os países do Mercosul não encontram grande relevância e repercussão na imprensa verde-amarela. Assim, torna-se instigante notar o interesse nos últimos cinco anos pelas ações de Hugo Chávez.

A crise econômica associada ao fracasso histórico das elites venezuelanas em amenizar as distâncias entre ricos e pobres gerou as condições para um coronel pára-quedista assumir o poder. Chávez, mal-sucedido em um golpe aplicado seis anos antes, foi eleito em 1998 com alta popularidade. Em 2002, resistiu a uma tentativa de golpe co-organizada com a participação de empresários da mídia, dentre eles concessionários de serviços de radiodifusão. Percebendo a importância vital da mídia no cenário político, estimulou sua TV estatal, criou uma rede para todo o continente – Telesur – e aprovou uma lei que normatizou conteúdos.

Em 27 de maio último, mesmo com apelo de várias entidades internacionais, a RCTV, maior televisão privada e grande pólo produtor de telenovelas, não teve sua concessão renovada. A decisão, amparada por relatório disponível na internet, gerou críticas de várias entidades, principalmente as empresariais, que consideraram a decisão chavista um disparate contra a liberdade de expressão.

Cabe lembrar o histórico da concessionária. Em 1976, a RCTV foi suspensa por ter difundido "noticias falsas e tendenciosas". Depois, ficou 34 horas fora do ar por transmitir "narrações sensacionalistas, quadros sombrios e relatos de fatos pouco edificantes". Em 1981, houve suspensão de um dia por ter transmitido "uma fita de conteúdo pornográfico", e uma advertência, em 1984, por representar "de forma humilhante" o então presidente e sua esposa.

O relatório que subsidiou a decisão contra a RCTV aponta que, durante a tentativa de golpe contra Chávez, a emissora teria subsidiado atores políticos e fabricado mensagens. Antonio Paquali, acadêmico venezuelano e crítico mordaz de Chávez, reconheceu, em entrevista ao jornal El Mercurio, os malefícios históricos da RCTV à comunicação na Venezuela, pois a emissora não valorizou a produção nacional como deveria e havia desfigurado o mercado publicitário "monopolizando 85% da audiência".

Assim, mesmo que a análise do ocorrido se concentre nas divergências políticas entre os grupos defenestrados por Chávez e suas potenciais práticas autoritárias castristas, convém recordar que a RCTV, como concessionária de serviço público, estava sujeita a essa medida por meio legal. Tanto é que, mesmo diante do protesto e apelo de algumas organizações, a emissora não conseguiu amparo judicial para reverter sua situação.

Diante do exposto, surgem dúvidas essenciais e conexas ao Brasil. Como evitar que o governante de plantão interfira no conteúdo editorial das concessionárias de radiodifusão? Ao mesmo tempo, como a sociedade pode ter uma programação que atenda às suas necessidades de informação, educação e entretenimento sem que haja uma autocensura impedindo o pluralismo e a presença do contraditório?

Comparada às nações com maiores Índices de Desenvolvimento Humano, a maior parte dos países latino-americanos possui um vácuo no que se refere à efetivação de autoridades reguladoras das comunicações.

Em 1988, houve um avanço significativo na Constituição Brasileira ao co-responsabilizar o Congresso Nacional nas concessões e renovações de radiodifusão. Contudo, estima-se que 35% dos congressistas tenham participação direta ou indireta em emissoras de rádio e TV. Destarte, o estágio em que vivemos de ampliação das possibilidades do exercício da cidadania prescreve a necessidade de criação de instâncias que se responsabilizem por fiscalizar o conteúdo e a lisura no processo de concessão de radiodifusão.

Países como França e Inglaterra têm institutos específicos para análise do cumprimento dos contratos de concessão, estimulando uma permanente prestação de contas (accountability) da mídia.

Afinal, é preciso transparência nos acordos estabelecidos entre o poder público e as empresas de radiodifusão, para que a sociedade saiba quais serão os critérios adotados para a renovação da concessão das emissoras no país.

Desta maneira, fazendo com que as decisões não estejam sob o arbítrio apenas do Poder Executivo ou de concessionários no Congresso, assegura-se a segurança jurídica necessária para o dever de informar sob o interesse público. Do contrário, os riscos de tentação autoritária por parte do Estado ou do mercado continuarão altos. Sem que a sociedade encontre um caminho de mediação efetivo.


Fernando Oliveira Paulino é mestre e doutorando em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília). É pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação (Lapcom) e um dos fundadores do SOS-Imprensa, na UnB. Fotografia de Cláudio Reis/UnB Agência. Fernando Oliveira Paulino é "correspondente" do Indústrias Culturais no Brasil.

1 comentário:

Mikasmokas disse...

A liberdade de expressão como desculpa
Escrito por Raúl Zibechi
04-Jun-2007


À medida que escorre o magma informativo provocado pela não-renovação da concessão da RCTV, constata-se que as opiniões da mídia e de numerosos “analistas” do sul mostram o que verdadeiramente são: repetidores das idéias difundidas pelos think tanks do norte. Por isso, convém ir por partes para ver quem põe as idéias e quem se faz de distraído, como se a liberdade de expressão não tivesse uma larga e triste história que, neste continente pelo menos, inclui um amplo leque de violações: desde jornalistas desaparecidos até o pertinente gotejo de demissões nos meios de comunicação.



Quem traz as idéias


As usinas de pensamento conservadoras norte-americanas e européias são as que estão por trás de boa parte dos argumentos que agora expõem os jornalistas e os políticos da direita latino-americana. Até agora, eram os centros de estudo nos Estados Unidos quem mais influenciava na região. Isso, porém, parece estar mudando. Um bom exemplo é a espanhola FAES (Fundação de Análises e Estudos Sociais), de onde o ex-presidente José Maria Aznar – que se indentifica com o franquismo, como demonstrado por seu partido nos últimos meses – influi nos partidos de direita da América Latina. “Uma agenda de liberdade” é o nome do último informe destinado à região, apresentado no final de maio em Buenos Aires e São Paulo. O documento define os problemas deste continente: o “populismo revolucionário”, o “neoestatismo”, o “indigenismo racista” e o “militarismo nacionalista”.


O informe de Aznar sustenta que os partidos de direita de nosso continente (liberais, democrata-cristãos e conservadores) devem perseguir o objetivo comum de derrotar democraticamente o projeto do “socialismo do século XXI”. Além disso, defende que os Estados Unidos tenham uma presença mais ativa na América Latina. O quão democrático é o caminho que Aznar propõe é revelado por seus contatos locais.


Na Argentina, apresentou o documento que, junto com o analista Rosendo Fraga, apoiou a ditadura militar que provocou o maior genocídio da história desse país. No Brasil, o fez junto com Jorge Bornhausen, dirigente do Partido Democrata (ex-PFL), o mais próximo da ditadura militar dos anos 60. Estas são as amizades de Aznar que qualificam o governo de Chávez como “sinistro” e “totalitário”.


Além destas figuras, interessa observar como os meios de comunicação reproduzem as análises que emitem essas usinas de pensamento conservador. Um dos veículos mais influentes do continente é o diário argentino La Nación, partidário de todas as cruzadas antipopulares e fiel representante dos interesses das multinacionais. No domingo, dia 27, publicou uma matéria em seis colunas intitulada “A imprensa da América do Sul na mira”. A jornalista se detém no que considera como “uma guerra entre a imprensa e o governo” e o faz repassando a situação em dez países do subcontinente: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Uruguai e Venezuela. Deixa de lado os três países em que, tudo indica, a liberdade de imprensa não está ameaçada: Colômbia, Paraguai e Peru. Em suma, optou pelos governos que, com maior ou menor ênfase, adotam o modelo neoliberal.


Chama a atenção a dureza com a presidente chilena Michelle Bachelet. Baseada numa “fonte” que preferiu “manter o anonimato”, a jornalista conclui que “a presidente tem uma obsessão por filtrar notícias” atribuída à sua “mentalidade mais ideológica” em relação a seu antecessor Ricardo Lagos, fato pelo qual “muitos canais de informação foram fechados”. Fala, inclusive, de alguns correspondentes estrangeiros que se queixaram de “maltrato oficial” devido a seu escasso contato com os veículos.


Luiz Inácio Lula da Silva tampouco está livre de críticas. É acusado de que seu vínculo com a imprensa “nunca foi intenso”, que “evita o contato com os meios de comunicação quando pode” e que, “diferentemente de Bachelet, Lula levou a hermeticidade um passo além”. E que criticou a imprensa por publicar “somente notícias ruins”. Nas críticas do La Nación, Tabaré Vázquez ocupa o terceiro lugar. “Seu governo acusa os meios de comunicação de 'conspirações e complôs' e o mandatário chegou a distribuir, em 2006, uma lista negra de veículos que acusa de integrar a 'oposição'”.


Citando um informe de março passado feito pelos empresários da imprensa (da Sociedade Interamericana de Imprensa), sustenta que existe “hostilidade contra a liberdade de imprensa e contra a imprensa independente”. Com Néstor Kirchner La Nación é implacável, sendo “autoritário” o adjetivo mais suave que lhe é imposto.


Os principais alvos são os governos mais duros com Washington e com os organismos financeiros internacionais. Segundo o diário argentino, Chávez abriu o caminho da “proibição da liberdade de expressão” que tanto Evo Morales como Rafael Correa estaão começando a percorrer. A tese que sustenta essas afirmações é interessante: como os partidos políticos estão se esvaziando e já não são representativos, os meios de comunicação assumem o papel de encabeçar a crítica e, por esses motivos, são castigados por esses governos. A conclusão vem quase no começo do artigo: “desconfiados e suspeitos, os governos regionais adotam, cada vez mais, a estratégia de enfrentar a imprensa”. Dito de outro modo: agora que os neoliberais não controlam nem estados e nem contam com partidos com apoio massivo à sua disposição, não têm outra saída que não se apoiarem nos meios de comunicação para fazerem prevalecer os seus interesses.



Paradigma


O jornalista espanhol David Carracedo acaba de publicar um exaustivo informe no qual mostra que, nos últimos anos, 293 meios de comunicação foram fechados por revogação ou por não-renovação de suas concessões: 77 emissoras de televisão e 159 rádios em 21 países. Só na Colômbia, 76 rádios comunitárias foram fechadas. Em março deste ano, a TeleAsturias, da Espanha, teve sua transmissão revogada por motivos técnicos. O informe não inclui o fechamento da Radio Panamericana do Uruguai, naquele que foi o maior atentado contra a liberdade de expressão desde o retorno do regime eleitoral no país em 1985.


Em 26 de agosto de 1994, uma resolução do governo Luis Alberto Lacalle fechou por 48 horas as rádios Panamericana e Centenario por transmitirem os sucessos do Hospital Filtro de 24 de agosto. Nesse dia, houve uma manifestação contra a extradição de diversos cidadãos bascos detidos nesse hospital, acusados de pertencer ao ETA. A demonstração resultou em um grande confronto com os policiais que terminou com a morte de um manifestante e dezenas de feridos. No mesmo dia que foi decretado o fechamento das emissoras, uma outra resolução revogava a autorização outorgada à Panamericana.


Os partidos Colorado e Nacional deram respaldo ao Executivo. A associação dos proprietários dos meios de comunicação, ANDEBU, teve séras dificuldades para chegar a um acordo interno que lhes permitiria um pronunciamento público. Depois de duas semanas do fechamento da Panamericana, a ANDEBU expressou “sua preocupação com os procedimentos do Poder Executivo”. Mas não deixou de manifestar, no mesmo comunicado, sua “preocupação com o conteúdo das transimssões da Rádio Panamericana”, que havia convocado o povo à manifestação pró-bascos, “por ser contrária aos princípios que regem a conduta da radiodifusão uruguaia”. Uma declaração que contrasta fortemente com a não-renovação da concessão da RCTV, que foi definida como “uma gravíssima agressão à liberdade de expressão”.



O ex-presidente Julio María Sanguinetti disse esses dias que “a Venezuela está entrando em um teritório muito preocupante de deterioração da democracia” e assegurou que o caso da RCTV significa um “colapso da liberdade”. Os nacionalistas, que eram governo em 1994 quando a Panamericana foi fechada, asseguraram que a decisão de Chávez é “uma violação aos direitos humanos” e o presidente do partido, Jorge Larrañaga, declarou que “é um ataque à liberdade de imprensa, um atentado contra as liberdades públicas, o que prova que o regime do senhor Chávez é péssimo do ponto de vista democrático”.



O contraste entre os acontecimentos de 1994 no Uruguai e as atividades atuais da direita a respeito da RCTV demonstram que a tão proclamada liberdade de expressão é apenas uma desculpa para atacar e derrubar governos que buscam sair do modelo neoliberal. E que, órfãos de apoio popular, só o podem fazer provocando situações de grande instabilidade que criam condições para golpes de Estado. É a estratégia desenhada por Aznar, fiel amigo de Bush, Blair e Sarkozy.





Raúl Zibechi é jornalista uruguaio.


http://www.correiocidadania.com.br/content/view/408/59/