terça-feira, 20 de novembro de 2007

AS CELEBRIDADES SEGUNDO JOHN LANGER


O texto de John Langer (Television’s "personality system") foi publicado inicialmente em 1981. Logo, podemos encará-lo como clássico e sujeito a críticas, dada a distância temporal até hoje. A televisão inglesa sofreu muitas alterações e a continental ainda as teve mais profundas, com o nascer dos canais comerciais, no que designamos habitualmente por neotelevisão. Os conceitos promovidos por Langer são afectados pelo tempo e pelas mudanças (sociais, económicas, culturais, tecnológicas), mas ficam aqui – para reflexão.

O ponto de partida de Langer é o sistema de estrelas de cinema (star system). Para Langer, não existe igual sistema na televisão. Aqui, revelam-se somente personalidades, categoria inferior à das estrelas. A codificação das estrelas no cinema pressupõe ideais, modelos de deuses e heróis; importa menos a personagem em si que o arquétipo (o tipo construído idealmente). Langer, seguindo Dyer (ver mensagem de anteontem) e Edgar Morin, ilustra o desenvolvimento do cinema com a psicologização dos protagonistas (cinema nos anos de 1930), o realismo, a ideia de “final feliz” e as personagens tipo (a rapariga pobre, a rapariga insinuante, o cavalheiro, o palhaço, o inocente, o proprietário), que vão de encontro aos espectadores, os quais obtêm felicidade ao consumir estes modelos. Depois, para conhecer melhor as personalidades, existem as revistas (cor-de-rosa, coração, de fãs), elemento crucial para o star system enquanto criador de imagem (Langer, 2006: 184). Aliás, Langer vê uma evolução das revistas, que passaram de um modelo de produção de ídolos para um de consumo de ídolos. Os heróis e as celebridades registam as suas biografias, revelam as suas vidas privadas.

Claro que a obsessão com as personalidades corrói o estatuto divino do sistema das estrelas, pois estas, embora não deixem de ser especiais, combinam agora o excepcional com o normal, o ideal com o dia-a-dia.

Ao invés, a televisão é para se ver no conforto do lar, é uma tarefa interligada com a rotina das horas do dia, associada à rede de valores íntimos diários. Não requer a saída ao cinema, a localização numa sala escura e a necessidade de se manter até ao fim sem se levantar, conversar ou fazer outra actividade. A televisão é um fluxo, como a vida que nunca para, não precisa de marcação prévia que quebre a rotina (como decidir ir ao cinema). Entre cinema e televisão há diferenças: distância/íntimo, rotina/extraordinário, familiar/excepcional, imediato/remoto. O que reintroduz a questão dos sistemas de estrela e de personalidade.

A televisão, enquanto fluxo, faz entender também a ideia de estação do ano, de série, de episódios consecutivos emitidos num horário previamente fixado. O que difere do cinema, em que a estrela aparece apenas uma ou duas vezes por ano. À ideia de fluxo opõe-se a de catálogo (em Patrice Flichy). Na televisão, o actor/actriz não tem o nome ou fama que possui no cinema, é quase anónimo, fica abafado pela personagem que representa ao longo de uma série. Fixamos o nome da personagem, esquecemos o nome do intérprete. As revistas, uma vez mais, são a extensão dessas personagens, através de colunas de opinião ou de boatos e fofocas.

Aqui permito-me discordar de John Langer, pois o tempo actual de televisão criou a sua bolsa de actores e actrizes, com as séries a serem vendidas em DVD após passagem num canal generalista ou por cabo. Donas de casa desesperadas, CSI ou Dr. House têm personagens e sabemos o nome dos actores e actrizes.

A televisão tem um formato adequado ao tema aqui tratado, o talk-show, doravante designado por programa de conversas. O ambiente destas conversas é informal, cria-se espaço para o convidado falar de si – e especialmente do que está a fazer ou promover naquele instante. Se liberta algum segredo pessoal, está no programa de conversas para, sobretudo, falar de projectos É um espaço de publicidade, acrescenta Langer (2006: 191).

Há outra característica na televisão. Quem nela aparece (caso de programas noticiosos ou conversas) estabelece uma relação directa com o espectador (olhos nos olhos), que leva este a acreditar no interlocutor. Diz-se: ele falou comigo, disse-me “boa noite” ou “até amanhã”. A relação atinge a intimidade, embora virtual.

O que isso implica? A estrela de cinema tem um estatuto próximo de um deus ou herói, a sua vida – mesmo que revelada – contém ainda mistérios. Na televisão, não há segredos mas apenas uma relação diária, directa, informal, de pessoa que está na televisão mas poderia ser um de nós a estar lá (a pós-televisão, como designou Eduardo Prado Coelho). O escuro da sala de cinema amplia essa distância com o actor/actriz, obriga-nos à reverência (o silêncio, o estar até ao fim). A claridade da televisão distrai-nos, deixa-nos falar a propósito do que se vê e ouve, a abandonar a tarefa de acompanhar a televisão e ir fazer outra coisa e voltar de novo, sem qualquer cerimonial de reconhecimento.

Como atrás discordei de Langer, a propósito da celebrização de actores/actrizes de televisão, também o faço aqui, dado o aumento de tempos de visionamento da televisão, mais de 25 anos após a publicação do seu texto, assim como a associação crescente entre cinema e televisão quanto à circulação de actores/actrizes pelos dois meios e a uma cadeia de valor que se aproxima (o cinema é uma indústria como a televisão, o DVD funciona como um produto comum aos dois meios após circulação do filme ou da série, em termos de venda). O que se mantém? O distanciamento – que a montagem do cinema permite e a da televisão inibe –, o sonho (providenciado pela ilusão do ecrã do cinema é maior e mais luminoso que o da televisão), a sofisticação do argumento (o episódio de televisão tem uma duração limitada, 50 minutos por exemplo, o filme dura mais tempo, com liberdade artística), o nome nos anúncios no cinema tem um impacte mais forte e destacado que a publicitação na televisão ou em possíveis anúncios na imprensa.


[a partir da leitura do texto de John Langer, incluido no livro de P. David Marshall (ed.) (2006) The celebrity culture reader. Nova Iorque e Londres: Routledge, pp. 181-195]

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