quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

SOBRE LUCHINO VISCONTI


No filme O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti (1906-1976), há três sequências memoráveis: a reza do terço e os cortinados brancos das janelas e portas baloiçando, deixando adivinhar um fim de tarde muito quente, a mudança de casa de D. Fabricio (Burt Lencaster) para o interior da ilha (Sicília), quando se aproximam as tropas de Garibaldi (1860) contrárias ao poder dominante, com a recepção respeitosa da população rural ao aristocrata, e o longo baile, em que o sobrinho do aristocrata, Tancredi (Alain Delon), que deixara o grupo de Garibaldi e integrara o exército regular, dança com Angélica (Cláudia Cardinale), filha de um grande proprietário de terras na mesma ilha. As personagens principais são dois homens: o aristocrata e o sobrinho, ligado ao novo poder da burguesia, com aquele a conduzir o processo de transição por dentro, afirmando que tudo se altera sem se mudar nada, o que equivale a dizer que um poder rende outro poder sem grande esforço e perda. Há um terceiro homem, o padre, que funciona como voz de consciência do aristocrata, mas sem ter qualquer poder material. As mulheres funcionam noutro nível: a mulher de D. Fabricio, uma beata, mantém a unidade da família, Angélica representa, através da beleza da juventude, uma nova geração e um novo domínio. A segunda significa, se quiséssemos pôr nela as palavras de D. Fabricio, a mudança sem haver mudança.


Aristocrata, marxista e homossexual, apaixonado pela ópera e pelo teatro, Visconti faria outros filmes antes de O Leopardo, de que deixo aqui alguns apontamentos. O primeiro que quero falar é A Terra Treme (La Terra Trema, 1948). Os pescadores da aldeia de Aci Trezza, na Sicília, são o centro da história, na sua luta contra os grossistas, os compradores de peixe. António, filho de uma família de pescadores, quer melhores condições de trabalho e de salário e revolta-se, acabando por comprar um barco e distinguir-se economicamente do resto das famílias de pescadores. Quando este naufraga, a condição daquela família regride e António e os irmãos não encontram emprego. Filme encomendado pelo Partido Comunista Italiano, são visíveis os signos e os traços da ideologia marxista, desde a foice e o martelo impresso em paredes da aldeia, mal apagados por forças opostas, e a palavra Mussolini, quando ele aceita emprego mas humilhado pelos grossistas de peixe no escritório destes. Os dois irmãos mais velhos da família são figuras centrais, pois enquanto António procura sobreviver na ilha onde nasceu e a que pertenciam as gerações anteriores, o mais novo sai da ilha em busca de melhores condições. O filme não explica tudo, mas a leitura do filme Rocco e seus irmãos deixa perceber o que Visconti tinha em mente. O papel das mulheres é mais relevante que em O Leopardo e de igual importância em Rocco e seus irmãos: uma representa o fiel da balança, que prefere não casar para manter a aparência, a honra da família. A outra envereda pela prostituição, não podendo casar segundo os costumes, embora o traço principal seja a desagregação da família, o núcleo central nos três filmes aqui comentados.


Se, no filme A Terra Treme, a partida de alguém para o continente é vista com constrangimento, as imagens iniciais de Rocco e seus irmãos (Rocco i Suoi Fratelli, 1960), retoma a questão do filme de 1948: uma família grande, com a mãe em papel de destaque, chega à estação ferroviária de Milão. O pai morrera e a família deixava a Sicília em busca de melhor emprego e sustento. O irmão mais velho era suposto estar à espera deles, o que não aconteceu, tornado o primeiro choque para os recém-chegados. Estes encontram o rapaz em casa da namorada, numa festa. Se o contexto do anterior filme eram os pescadores, aqui são antigos trabalhadores rurais que se empregam no sector secundário (construção civil, indústria automóvel), a passagem do sector primário para o proletariado da grande cidade. A Milão de 1960 é uma cidade em que crescem os aglomerados urbanos e as fábricas, em que a produção e consumo de bens é evidente. Se a irmã de António se prostitui por um lenço ou um colar, a prostituta que anda com Rocco e o seu irmão mais velho tem outras pretensões materiais. A família mantém-se unida até que Simone, um dos irmãos mais velhos, abandona o boxe, uma actividade ligada às classes populares (e que vimos mais recentemente retratada no filme de Clint Eastwood, Million Dollar Baby, 2004), que lhe garantia um certo rendimento e a estabilidade emocional. A mãe (Katina Paxinou) é o centro da história, pelo que controla e pelo que motiva, mas perde força no clã com a queda do filho. É Rocco (Alain Delon), uma personagem mais apagada, que sobe lentamente à liderança do grupo familiar até ser o que persuade, remedeia, apazigua. A ligação com Nadia, uma prostituta (Annie Girardot), que vivera anteriormente com Simone, acaba por estragar a relação entre os irmãos e a família desagrega-se ainda mais.

Numa das sequências do filme, a mãe queixa-se que a família abandonara o dialecto siciliano, que se ouvia em todo o filme A Terra Treme. Mas, se neste, há um forte esquematismo ideológico (classe contra classe), em Rocco e Seus Irmãos e em O Leopardo há histórias mais bem construídas. Embora se mantenham esquemas: a família unida versus desunida, o que representa a força contra a fraqueza, a luta pela habitação, com o lado masculino da família a dormir comunitariamente num mesmo quarto, a força das mulheres, esteio da honra (no filme de 1948, há uma mulher fraca, dentro da família, no filme de 1960, a mulher fraca entra na família mas é rejeitada e assassinada quase no final), a decomposição e recomposição social (mais profunda e harmoniosa no filme de 1963), a Sicília como lugar presente (ou ausente presente no filme de 1960). O filme de 1963 é a cores, o filme de 1948 tem apontamentos de etnografia, de filme documentário. Os primeiros dois filmes aqui comentados mostram a família e as suas lutas a partir de dentro, o filme mais recente mostra a família e as suas relações com o exterior, onde se vê o poder e as diferentes classes sociais. A igreja na praça principal de Aci Trezza permanece sempre fechada e o padre que aparece na cerimónia da benção de novos barcos é velho e entra e sai de campo sem qualquer outra referência, no filme O Leopardo a igreja é um dos locais de protagonismo, mesmo que seja de conflito, como a sequência da invasão das tropas de Garibaldi e a morte de soldados opostos.

Visconti faria filmes igualmente importantes como Obsessão (Ossessione, 1943), Belíssima (Belissima, 1951), Senso (1954), Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971), Ludwig (1973) e Violência e Paixão (Gruppo di Famiglia in un Interno, 1974).

1 comentário:

mdg disse...

ha dias assim em que apetece falar do que so morre connosco...