domingo, 18 de julho de 2010

CIDADES – 3

O texto de Walter Benjamin, Paris, Capital do Século XIX, é um dos mais citados do autor desaparecido tragicamente no começo da II Guerra Mundial, a par de A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. A estrutura é simples, como se fossem fichas de leitura tendo um tema e um autor ou homem de acção (filósofo, político). Mas a escrita é densa (política e filosoficamente) e a leitura agradável. Assim, o texto contempla Fourier ou as galerias, Daguerre ou os panoramas, Grandville ou as exposições universais, Luís Filipe ou os interiores, Baudelaire ou as ruas de Paris, Haussmann ou as barricadas, num total de 14 páginas, incluindo bibliografia.

O primeiro ponto, e um dos que mais me interessam aqui, é sobre as galerias, associadas aos grandes armazéns onde se expunham têxteis e artigos. Benjamin cita um Guia Ilustrado de Paris: “Estas galerias, uma recente invenção do luxo industrial, são corredores com tectos envidraçados e entablamentos de mármore que atravessam blocos inteiros de edifícios [...] alinham-se as lojas mais elegantes, de tal forma que as galerias formam uma cidade, um mundo em miniatura”. As galerias, cenário da primeira iluminação a gás, eram construídas com novos materiais: ferro, já usado nos carris e locomotivas dos comboios, e vidro, aplicado à construção (p. 68), e começariam a surgir por volta de 1837.

As exposições universais são outra “ficha de leitura” no texto de Benjamin. Taine escreveria em 1855: “A Europa desloca-se para ver as mercadorias”. Os seus promotores queriam que elas divertissem as classes trabalhadoras e fossem festas de emancipação. Nascia o conceito de consumo, além do da produção inerente ao modo de produção industrial, criando um valor de troca mais poderoso que o valor de uso (p. 72). Escreve Benjamin, numa linha de raciocínio tipicamente marxista, e que podemos retomar em Theodor W. Adorno: “Elas inauguram uma fantasmagoria onde o homem entra para se divertir, uma ideia que é facilitada pela indústria do entretenimento que o coloca ao nível da mercadoria”. À mercadoria, ao seu fetichismo, juntam-se as spécialités, a moda e a publicidade (o reclame), que o século XX iria ampliar.

Lugar de trabalho e lugar onde se vive distinguem-se, escritório e interior do lar opõem-se, eis outro ponto do texto Paris, Capital do Século XIX. Anuncia Benjamin: “Na configuração do seu quadro de vida privada, o indivíduo reprime ambas as precoupações” (p. 73): as reflexões sobre os negócios e sobre a função social do indivíduo. A sala de estar é um camarote no teatro do mundo – como seria útil Benjamin escrever hoje sobre a cultura do quarto, o espaço onde o indivíduo, caso do adolescente, vive rodeado de máquinas electrónicas de comunicar.

Ao lar e ao espaço público, Benjamin junta Haussmann e o seu ideal de “traçado de longas e alinhadas fileiras de ruas” (p. 75). A actividade de Haussmann integra-se, diz o nosso autor, no imperialismo napoleónico que favorece o capital financeiro. As suas expropriações dão origem a discursos parlamentares de oposição (1864), mas os quartiers perdem a sua fisionomia. A verdadeira finalidade de Haussmann, nota o crítico, foi “precaver a cidade contra a guerra civil”. O incêndio de Paris seria o remate da obra de destruição levado a cabo por Haussmann (p. 77). Noto que a Moscovo de Estaline também alterou a fisionomia de ruas estreitas e casas baixas, onde comunidades viviam juntas há séculos, e transformou essas zonas em avenidas largas com prédios elegantes embora pesados, para premiar a intelligentsia e a nomenklatura. E o mesmo estará a acontecer em Pequim e Xangai.

Baudelaire e a melancolia do indivíduo que caminha isolado na cidade (spleen e flâneur) são como que um fecho do texto de Benjamin, como aqui se lê: “A multidão é o disfarce através do qual a cidade familiar atrai o flâneur como uma fantasmagoria [que] ora a faz parecer uma paisagem ora um quarto, [e] inspirou a ornamentação dos grandes armazéns que tornam a própria flânerie um negócio lucrativo” (p. 74). O que é único em Baudelaire, continua Benjamin, é a compreensão e articulação das imagens da mulher e da morte, da modernidade que estilhaça o ideal.

Outro ponto do texto de Benjamin é o que identifica os panoramas, paisagens que se emancipam da pintura, “através de artifícios técnicos, em teatros de uma perfeita imitação da natureza” (p. 69). O pintor David aconselhava os seus alunos a desenharem os panoramas com rigor e fidelidade ao modelo real. Benjamin fala ainda de uma literatura de panorama, de esboços que representavam figuras desenhadas em primeiro plano nos panoramas. Ora, Daguerre era aluno de Prévost, um pintor de panoramas. O seu aparelho de fotografia seria anunciado em 1839. Depois, em 1855, a Exposição Universal consagra a primeira mostra particular de fotografia (p. 70), enquanto Wiertz publica o primeiro artigo sobre fotografia. Benjamin sugere que, à medida que se desenvolvem os meios de transporte, a pintura perde importância, substituída pelo instantâneo da fotografia. Igualmente, interesses económicos abrem-se ao novo meio.

Conclui Benjamin: a arquitectura abre-se às construções da engenharia, a fotografia persegue os valores da reprodução da natureza, a fantasia completa-se nas artes gráficas e na publicidade na Paris oitocentista, quando datam as galerias, os interiores do lar, as salas de exposição e os panoramas. Escreve: “Cada época transporta em si uma finalidade e realiza-a com astúcia – como Hegel percebeu” (p. 77). O principal objectivo do texto era dar conta das ruínas da burguesia, no momento em que a aristocracia perdera igualmente o poder. Mas muito decorreu até hoje e a visão catastrofista e radical de Benjamin precisaria de ser descodificada e reenquadrada.

Leitura: Walter Benjamin (2001). "Paris. Capital do Século XIX". In Carlos Fortuna (org.) Cidade, Cultura e Globalização. Oeiras: Celta, pp. 67-80

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