segunda-feira, 5 de julho de 2010

INTERPRETAR E COMENTAR

Estou a ler um texto de que serei comentador. Uma obra escrita abre-se a comentários, críticas, sugestões – e serve para para acordar a memória, reinterpretar, comparar. Quando reeditou Contra a Interpretação trinta anos depois do primeiro lançamento, Susan Sontag (2004: 358) dizia que os anos 60 já estavam esquecidos: “o espírito de dissidência [foi] sufocado, e transformado em intenso objecto de nostalgia”. A razão inicial transformara-se devido à perda de importância da contextualização inicial, ficando apenas a memória. No romance As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (2008: 139), o Grão Kublai Kan quer saber se Marco Polo, quando regressar ao seu país, repetirá as histórias que lhe aconteceram no Oriente. Ao que este responde: “quem me ouve só fixa as pérolas que deseja. [...] Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido”. Um novo contexto pode provocar uma nova interpretação, cujo contorno pode não ser previsível. Calvino serviu-se da obra de Marco Polo mas, certamente, inspirou-se também em texto de Samuel Coleridge (1797/1798). Este, a partir de um sonho, intuiu imagens visuais e um poema de trezentos versos onde relata a construção de um palácio de Kublai Kan. Jorge Luís Borges (1983: 25), nas Novas Inquirições, escreve sobre Coleridge e outros autores que sonham temas e objectos que se repetem na estrutura, sem que conheçam as versões anteriores, e fala de uma série sem fim, em que a chave do conhecimento dos anteriores pode estar no último. A cultura liga acontecimentos e estruturas, como se ciclos se iniciassem, interferissem e concluissem, dando origem a novos ciclos sem conhecimento directo dos anteriores. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco (1998: 282) descreve o diálogo entre Guilherme de Baskerville e Adso de Melk: “Muitas vezes os livros falam de outros livros [...] é como se falassem entre si”. Aqui, a cultura dos livros passa para outros, sendo o erudito um eventual passageiro transportador.

Por isso, o meu trabalho de comentador vai repartir-se entre ler, interpretar e comentar, a partir do meu conhecimento e da memória de alguns factos, provavelmente subjectiva.

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