domingo, 28 de novembro de 2010

CITAÇÃO

A editora americana de Heiner Müller contava a seguinte história: ela e o marido viviam numa zona abastada do Estado de Massachusetts. Os vizinhos quiseram saber o que fazia o casal, que explicou estar ligado ao teatro, uma actividade com "um palco onde há pessoas que representam, que fazem como se fossem outras pessoas, e representam a vida dessas pessoas. Em baixo, estão sentadas pessoas que olham e ouvem, podem gostar ou não, no fim, aplaudem ou não". A mulher do vizinho percebeu logo: claro, isso é a televisão!

O actor confessa-se cansado, com o público a não se importar com ele. O outro actor diz-lhe que não, que o público o adora e que vai ao teatro ver as peças porque ali só se representa qualidade. O velho actor duvida: no final do espectáculo, o público vai-se embora e dormir, esquecendo-o.

O actor é Luís Miguel Cintra. Fim de Citação é uma colagem de textos, uma colecção de citações de Luiza Neto Jorge, Beckett, Genet, Lorca, Pirandelo, Müller e outros. O actor chama-lhe também um prólogo, um "lever de rideau", uma advertência. E ainda um improviso, porque em vez de Fim de Citação estava para ser uma produção com outra entidade, mas os cortes no orçamento impediram essa actividade. Luís Miguel Cintra diz ainda que se trata de um balanço de 37 anos do teatro Cornucópia, com uma revisitação por encenações já vistas. As personagens são, aliás, o encenador (Luís Lima Barreto), a assistente de encenação (Sofia Marques), o contra-regra (Dinis Gomes), o actor (Luís Miguel Cintra) e o urso (Manuel Romano, que é o verdadeiro assistente de encenação na peça). Os espelhos permitem ver os actores de costas e de lado - e também o público, como no quadro As Meninas de Velásquez.

Luís Miguel Cintra mostra a sua melancolia ao escrever sobre o tempo presente: "Caminhamos a passos largos para uma lógica de mercado nas artes dos espectáculos que cada vez nos empurrará mais para o mesmo desprezo pelo público que é próprio das empresas comerciais: cada pessoa, mais que pessoa, será um porta-moedas".

No final, os actores cantam em playback o "Agnus Dei" da Missa da Coroação de Mozart (Sofia Marques "com" a voz de Stich-Randall). O palco ficaria vazio, confundindo-se com o que existe para lá dele: o bastidor. O público bateu palmas, veio-se embora mas não esqueceu o actor nem o seu teatro. Para o ano, mesmo com os cortes orçamentais, esperamos ver o actor em A Catatua Verde, de Arthur Schnitzler (Teatro D. Maria II) e A Varanda, de Jean Genet (Teatro do Bairro Alto).

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